Cultura no Centro
AGENDA CULTURAL AMPLIA MOVIMENTO NAS RUAS, ANIMA TERRITÓRIOS E DÁ MAIS VIDA E SEGURANÇA À ÁREA CENTRAL DA CIDADE
A terça-feira, dia 7 de agosto, representou uma data especial para a Biblioteca Pública do Estado.
Com um show da Marmota Jazz, o dia marcou a centésima edição do Chapéu Acústico, projeto que traz jazz, MPB e música instrumental para dentro do casarão inaugurado no começo do século passado.
Não há cobrança de ingressos. Como o próprio nome da ação sugere, um chapéu circula entre os espectadores para arrecadar contribuições espontâneas, integralmente repassadas aos artistas.
As apresentações acontecem sempre às terças-feiras, a partir das 7 horas da noite.
Desde a estreia, em 29 de setembro de 2016, o Chapéu Acústico registrou um público de mais de 5 mil pessoas, com a participação de aproximadamente 250 artistas. Para se ter ideia do sucesso, a agenda está fechada até abril de 2019.
– Para os músicos, é uma oportunidade única de se apresentar para uma plateia atenta e educada, que valoriza a qualidade musical, diz Marcos Monteiro, produtor cultural que criou a série de concertos na Biblioteca Pública.
No rastro do Chapéu Acústico, outros projetos ganharam lugar na cena musical do Centro.
O Mistura Fina – Música Para Fugir do Trânsito é mais uma opção para quem deseja evitar os transtornos da hora do rush, preferindo relaxar com boa música.
Desde março, os espetáculos acontecem sempre às quintas-feiras, às 6 e meia da tarde, no Foyer do Theatro São Pedro, com uma programação que contempla samba, blues, jazz e rock.
– A proposta é trazer atrações de relevância cultural que, ao mesmo tempo, saibam dialogar com a linguagem do povo que circula pela região central da cidade, diz Bruno Melo, curador do Mistura Fina ao lado de Arthur de Faria.
Pelo Foyer do São Pedro, já passaram Elisa Meneghetti, Wander Wildner, Valéria, Ladeira String Band e Paola Kirst, entre outros artistas.
Com entrada gratuita, o Mistura Fina tem financiamento da LIC/RS (Lei de Incentivo à Cultura) e patrocínio da Sulgás (Companhia de Gás do Estado do RS).
No final de julho, a escadaria do Viaduto Otávio Rocha ficou pequena para abrigar o público que se aglomerou em seus degraus para assistir à estreia do Jazz na Escadaria, outra iniciativa do produtor Marcos Monteiro. Cerca de 500 pessoas circularam durante as duas horas de show do João Maldonado Quarteto, na área próxima ao Tutti Giorni Bar.
A exemplo do Chapéu Acústico, o Jazz na Escadaria é gratuito, recolhendo contribuições espontâneas para custear o cachê dos músicos. A proposta é ocupar o viaduto uma vez por mês – na sexta-feira, dia 10 de agosto, foi a vez do Girando a Renda, quarteto que mistura jazz ao repertório de Pixinguinha, Noel Rosa, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Dorival Caymmi e Chico Buarque.
Territórios negros
Atualmente, o Boteco do Paulista é um dos pontos culturais mais badalados do Centro. Em certas noites, chega a reunir um público superior a mil pessoas na calçada em frente ao bar. Mas nem sempre foi assim.
Quando os tapumes cercaram a orla do Guaíba, em 2015, o comércio do extremo da península que acolhe o Centro de Porto Alegre viveu maus bocados. Um dos estabelecimentos que mais sofreu com as obras de reformulação do cartão-postal da capital gaúcha foi o Boteco do Paulista, que havia angariado um público fiel e cativo na década passada graças às rodas de samba promovidas aos domingos.
Gelson Larrea, que adquiriu o bar em 2012, jamais imaginou que a clientela iria escassear de uma hora para outra.
– Rezava para que fizesse sol no fim de semana para diminuir o prejuízo. Mas aí choveu em nove domingos consecutivos. Eu na maior pindaíba, relembra Gelson.
Eis que apareceram uns rapazes e umas moças de cabelo rastafári pedindo para usar o local para uma montagem teatral. Faziam parte do Grupo Pretagô, de jovens oriundos do curso de Teatro da UFRGS.
A peça AfroMe – que acabaria ganhando o Prêmio Braskem do Porto Alegre Em Cena de 2016 – tinha tudo a ver com aquela região marcada pela presença negra, para o bem e para o mal.
– Depois da abolição da escravatura, o Código Penal foi alterado para criminalizar atividades da população negra, como carnaval e capoeira, conta Thiago Pirajira, diretor de AfroMe. Em seguida, ele acrescenta: – Além disso, passou a ser punido com prisão o crime de vadiagem, no qual os escravos libertos eram facilmente enquadrados em função da falta de trabalho e moradia.
Thiago salienta que os “vadios” não ficavam encarcerados junto aos demais prisioneiros na Casa de Correção, presídio que funcionou à beira do Guaíba de 1855 até 1962, quando o prédio foi dinamitado.
– Em vez disso, tinham as pernas amarradas com grilhões junto à área externa da penitenciária.
Como se não bastasse, outra parcela da comunidade negra era encaminhada com frequência ao Largo dos Enforcados, logo ali adiante, na Praça do Tambor – como era popularmente conhecida a Praça Brigadeiro Sampaio, no trecho final da Rua da Praia.
Dito isso, dá para perceber que a escolha do Boteco do Paulista como palco não foi casual. Afinal, o trabalho do Grupo Pretagô reverencia a alegria e a amargura dos territórios negros de Porto Alegre. Além disso, a trupe buscava um lugar diferente para apresentar uma narrativa inédita.
– No bar, os sentimentos se potencializam. As pessoas bebem, riem, choram, tentam escapar das convenções sociais. É um local adequado para a festa cênica que desejávamos apresentar, diz Thiago.
Como estava bastante “esgualepado”, o dono do Boteco do Paulista topou na hora a proposta do grupo de teatro.
É verdade que, após o início dos ensaios, com a insistência das batidas de percussão, correu o boato na vizinhança de que Gelson havia transformado o botequim numa casa de macumba.
Menos mal que, na primeira exibição de AfroMe, apareceram 50 pessoas. Na segunda semana, vieram 500.
Resumo da história: a peça foi um sucesso e o bar de Gelson voltou à cena cultural com público renovado.
– O mais incrível é que, além de espaço cultural, preserva a característica do boteco clássico, como uma entidade que congrega tribos bem diferentes, elogia Joanna Burigo, uma das principais vozes do feminismo no Brasil (fundadora do blog Casa da Mãe Joanna), que assistiu na sexta-feira, dia 3 de agosto, à apresentação de música paraense da banda Chamegado Carimbó.
Em tempo: na programação do Boteco do Paulista, o Grupo Pretagô continua marcando presença com uma atração diferente a cada mês. No dia 10 de agosto, homenageou o cantor Luiz Melodia, ícone da cultura negra brasileira, que faleceu há cerca de um ano atrás (no dia 4 de agosto de 2017).
Uma livraria boêmia
Em certas noites, quem passar pela Rua Fernando Machado vai notar uma movimentação inesperada na calçada em frente à Livraria Taverna.
Durante saraus, rodas de conversa, lançamentos de livros, shows musicais ou exibição de filmes, o horário é prolongado até as dez horas da noite. No sábado, 18 de agosto, por sinal, está agendado o Sarau da Minas, protagonizado só por mulheres.
Aberta há dois anos pelos sociólogos Ederson Lopes e Andre Günther, a Taverna se propõe a ser uma “livraria boêmia” – evidentemente, o carro-chefe é o livro, mas a casa também oferece cerveja artesanal.
O acervo de 5 mil títulos prioriza as áreas de ciências humanas, além de literatura clássica e contemporânea, com ênfase em temáticas ligadas a questões de gênero, sexualidade e discriminação racial.
A princípio, a livraria operava apenas no modo virtual. As entregas eram feitas pelo correio ou de bicicleta para clientes de áreas próximas. A certa altura, o contato direto com o público se impôs.
Ederson e André instituíram o espaço na Fernando Machado com a cara e a coragem, sem muito dinheiro para investir.
Deu tão certo que, nos próximos dias, começarão a abrir uma parede para expandir a livraria até a casa ao lado, o que permitirá receber as pessoas com mais comodidade.
Ao redor da Taverna, aliás, já se formou uma comunidade de clientes e amigos, entre eles, autores como Tiago Germano e Samir Machado de Machado. Escritores ministram cursos e oficinas, a exemplo de João Armando Nicotti (Literatura Brasileira e Poesia Russa), Luísa Geisler (Escrita Criativa) e Atena Beauvoir Roveda (Transantropologia).
Desde outubro de 2017, a Taverna é também um selo editorial, que se prepara para lançar a terceira obra do catálogo – a reedição de Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos Reis (1822/1917). Escrito em 1859, é o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, retratando a escravidão pela ótica de uma escritora afrodescendente.
As musas estão convidadas
"Três poetas da cidade leem seus poemas no bar. As musas estão convidadas”.
A frase no cartaz pendurado na parede comprova o pioneirismo do bar Tutti Giorni em promover atividades culturais no Centro da capital do RS.
O cartaz é um convite para o sarau Vício e Verso, que transcorreu lá nos meses de junho e julho de 1991, com os poetas José Antônio Silva, José Weis e Celso Gutfreind.
– Lembro que o bar abria no sábado à noite só por causa do sarau, diz Ernani Marchioretto, o Nani, dono do boteco. A seguir, ele comenta: – Naquela época, quase ninguém fazia sarau. Hoje em dia, é bem mais comum.
Na década de 1990, o Tutti Giorni ainda estava situado na parte alta (nº 780) da escadaria do Viaduto Otávio Rocha, a poucos degraus da Rua Duque de Caxias. Ali permaneceu por cerca de 20 anos. Após um estágio no Largo dos Açorianos, quando chegou a arregimentar uma multidão de 2 mil jovens em frente ao bar, retornou há três anos para a escadaria, agora nos degraus debaixo ( nº 710), perto da esquina da Borges de Medeiros com a Rua Jerônimo Coelho.
Bar preferido dos artistas gráficos, o Tutti Giorni também promoveu ao longo dos anos lançamentos de livros da GRAFAR (associação dos cartunistas gaúchos). Atualmente, preserva a tradição de espaço cultural com duas atrações semanais – Terça de Samba, com o grupo Puro Asthral, e Música na Escadaria, na sexta, com shows de rock, blues e jazz, ambos os eventos com início marcado para as seis horas da tarde.
sarau na vitrine
As clientes da Loja Profana da Galeria Chaves, no coração do Centro de Porto Alegre, volta e meia são pegas de surpresa.
Nessas ocasiões, a atriz Carmen Henke encarna a personagem dona Lili, do livro Lili Inventa o Mundo, para recitar poemas de Mario Quintana no ambiente da loja, em meio às peças de vestuário expostas na vitrine e nas araras.
– É maravilhosa a ideia de atrair as pessoas com uma atividade lúdica, diz a servidora pública Carmen Severo, que passou por lá na terça-feira, dia 7 de agosto, quando foi realizada mais uma edição do sarau da Profana.
Os poemas ficam pendurados num varal para que as clientes escolham quais serão declamados pela atriz. Para comemorar o encontro de arte e poesia, uma taça de espumante é oferecida.
– A arte é o que nos move a pensar num mundo tão colorido quanto as roupas da Profana e acreditar que esse mundo é necessário e possível, A poesia, a música, o teatro, as artes plásticas, todas essas criações, de uma forma ou de outra, inspiram o que fazemos e buscamos, afirma a dona da loja, Simone Moro.
Palavra afiada
Os slams são desafios poéticos promovidos em locais públicos.
Na esteira da cultura do hip hop, surgiram em 1986, num bairro da periferia de Chicago, por iniciativa do poeta e operário da construção civil Marc Kelly Smith.
Marc criou as regras desta competição com versos ritmados, as quais permanecem intactas até hoje – não vale usar figurino, acessório ou acompanhamento musical. Um corpo de jurados escolhido na hora entre as pessoas que acompanham o evento indica os vencedores com base em critérios como capacidade de interpretação e conteúdo da mensagem.
No Brasil, o slam foi introduzido por Roberta Estrela D’Alva, poeta, atriz e MC de Diadema (SP), em 2008. De lá para cá, se espalhou pelas demais capitais brasileiras.
Em Porto Alegre, existem atualmente nove coletivos em atuação. A maior parte dos slammers frequenta vários grupos simultaneamente. Cerca de 70% deles são oriundos dos bairros periféricos, o que se traduz nas temáticas abordadas.
Os encontros têm acontecido com frequência no Centro da cidade. Em julho, por exemplo, o Slam RS tomou conta da Praça 15. No sábado anterior, o Slam da Minas havia ocupado a Praça do Aeromóvel – no dia 11 de agosto, às 4 da tarde, o coletivo voltará à ação, desta vez, na Praça da Matriz. O Slam Chamego, por sua vez, prefere atuar no Viaduto do Booklyn, junto à Avenida João Pessoa.
Já na sexta-feira, dia 17 de agosto, a partir das 7 horas da noite, o Slam do Gozo esteve na Praça Professor Saint-Pastous, na Cidade Baixa:
– Queremos discutir os temas da sexualidade e do prazer. Não podemos esquecer que o RS é um dos estados do País com maior incidência de contágio por HIV e com índices de mortalidade altíssimos em função da AIDS, diz a escritora trans Atena Beauvoir Roveda.
Acompanhe abaixo a performance de Atena no Slam Peleia, também na Praça Professor Saint-Pastous, no dia 27 de julho.
Chocalhos e pandeiros
Não custa lembrar ainda que, no Centro, há uma boa oferta de oficinas de arte, a maior parte concentrada na Casa de Cultura Mario Quintana.
Um exemplo é a Kraft, oficina de técnicas e metodologias que utilizam objetos como recursos sensíveis para trabalhar a memória e a imaginação. Esses objetos incluem desde criações artísticas, como dobras gigantes feitas de papel kraft, até instrumentos musicais a exemplo de chocalhos e pandeiros.
Ao longo do mês de agosto, estão previstos quatro encontros, às terças-feiras (dias 8, 15, 22 e 29), entre três e cinco horas da tarde. Para participar, não é preciso fazer inscrição – basta comparecer à Sala Cecy Franck, na Casa de Cultura Mario Quintana, no horário estabelecido. A participação é gratuita.
– Se não puder ir em todos dias agendados, não há problema. Pode participar das reuniões quando for possível. Só pedimos para usar uma roupa confortável e ser pontual, diz Luciane Panisson, que faz parte do Coletivo DAS FLOR, responsável pelas oficinas.
O Museu do Trabalho, que oferece uma lista permanente de oficinas de gravura, escultura, xilografia e litografia, abrirá suas portas nos dias 22 e 23 para mais uma edição da Parada Gráfica. A feira de publicações e peças gráficas, como zines, revistas, livros, pôsteres, ilustrações, objetos e obras variadas de arte impressa, produzidas e distribuídas de forma independente, costuma atrair milhares de visitantes num só fim de semana.
Não dá para deixar de citar o Cinebancários, na subida da Ladeira, que disponibiliza uma programação de filmes brasileiros e latino-americanos contemporâneos, com ingressos muito acessíveis – R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada para estudantes, pessoas acima de 60 anos e bancários sindicalizados), inclusive aos sábados e domingos.
Uma coisa é certa: a programação cultural do Centro não cabe numa só reportagem. Faltou espaço para mencionar o IAB, a Cinemateca Capitólio, o roteiro de museus, as galerias de arte, a Ocupação Mulheres Mirabal e tantas coisas mais. Desculpem a nossa falha, mas não será este um sinal de que o Centro de Porto Alegre está bem vivo?
– Há uma interação positiva nessa onda de opções culturais na região central, diz Fernando Ramos, organizador do FestiPoa Literária, um dos principais eventos de cultura da cidade.
Nani, do Tutti Giorni, vai mais longe, abrindo os braços como se com eles pudesse abarcar toda a área central:
– Quer dar mais vida e segurança ao Centro? É simples: basta permitir que os estabelecimentos possam abrir até mais tarde, sem deixar de fiscalizar quem não se comporta direito. Isso aqui era para estar repleto de bares, cafés, confeitarias, bibliotecas durante a noite... Do jeito como está, as pessoas estão proibidas de sair de casa por falta de segurança.
Em seguida, ele complementa: – Quando o Tutti Giorni está aberto, o pessoal do prédio aqui de cima pode descer com uma cadeira de praia para tomar um mate, porque estará totalmente seguro. E ainda vai se divertir...