A primeira galeria da cidade
Marco de um tempo de modernidade, a Galeria Chaves está inscrita na memória afetiva de Porto Alegre
“Inaugurou-se officialmente, no sábado passado, a Galeria Chaves. É um melhoramento cuja importância merece todo o relêvo. Vem dar a esta nossa cidade, que ainda conserva alguma cousa de seu antigo aspecto colonial, um tom marcado de cidade europeia, mas, sobretudo, constituirá uma grande commodidade para a população.”
A informação saiu no jornal Estado do Rio Grande, de Porto Alegre, no dia 21 de abril de 1930. O redator da notícia acrescenta que, “durante o nosso agreste inverno”, a passagem coberta entre a Rua da Praia e a José Montaury será “um refugio providencial para os transeuntes”. Por fim, conclui que “commodidade, elegância, distinção, eis, em summa, o que vem trazer a Porto Alegre a Galeria Chaves”.
A primeira galeria de Porto Alegre – tombada como patrimônio cultural em 17 de abril de 1986 – despontou na paisagem da capital gaúcha como uma novidade e tanto.
A cidade ganhou ares de modernidade com a inauguração do edifício de seis andares com subsolo, no qual o térreo era destinado a lojas refinadas, ao passo que os pavimentos superiores abrigavam apartamentos e consultórios médicos.
Antes de tudo, a boa nova remetia às galerias charmosas e requintadas de metrópoles europeias, como Paris e Milão, ou mesmo de capitais sul-americanas, a exemplo de Buenos Aires.
Além disso, foi o primeiro prédio porto-alegrense a conciliar as atividades de passeio e compras, adotando o conceito que, com o passar do tempo, iria desaguar nos atuais shopping centers, como observa Vlademir Roman, arquiteto e urbanista que produziu (com Rodrigo Poltosi) o Guia de Arquitetura de Porto Alegre, lançado pela Escritos Editora, em 2017.
Palácio Renascentista
A notícia do Estado do Rio Grande, por sinal, esclarece uma incorreção histórica.
Embora os sites oficiais da prefeitura municipal e até as placas decorativas que estão penduradas nas paredes da galeria apontem o ano de 1936 como data de inauguração, o espaço foi aberto seis anos antes, como atesta a nota publicada no Estado do Rio Grande (*).
– A pesquisa de campo não deixa dúvidas. A galeria foi efetiva e oficialmente inaugurada em 19 de abril de 1930, apesar de já estar em pleno funcionamento desde fevereiro daquele ano, diz a arquiteta Nara Helena Machado, autora de Modernidade, Arquitetura e Urbanismo: o Centro de Porto Alegre (1928-1945), tese produzida em 1998 para o curso de doutorado em História na PUCRS.
Conforme Nara, a inauguração foi noticiada também pelo Correio do Povo e o Diário de Notícias, entre outros jornais. Além disso, foi tema de reportagem da Revista do Globo com o título A Galeria Chaves Barcellos, na edição de 28 de junho de 1930.
Por que, então, a confusão de datas?
– Lamento, mas não sei explicar, responde, com sinceridade, Nara Helena, professora aposentada de Teoria e História da Arquitetura da PUCRS.
É provável que seja fruto de uma imprecisão de análise ou até mesmo de algum erro de digitação que tenha induzido estudiosos a seguirem uma trilha falsa. Seja como for, a reparação explica por que a Galeria Chaves aparece como cenário do romance Os Ratos, de Dyonélio Machado, publicado em 1935, o que até hoje intriga pesquisadores ainda apegados à data de 1936.
Curiosamente, embora tenha trazido para a capital do RS um padrão inovador de espaço comercial, a galeria se prendia a um estilo arquitetônico alheio às tendências modernistas que se desenhavam em sua época.
Vlademir Roman destaca que a edificação se assemelha a um “palácio renascentista” encravado no Centro de Porto Alegre.
A feição renascentista da galeria é visível na fachada junto à Rua da Praia, na qual um grande portal em arco pleno é ladeado por duas grossas colunas de granito róseo (material extraído das pedreiras do bairro Teresópolis).
Ela está alinhada a outras construções neoclássicas da área central, como o prédio da Companhia Força e Luz (atual Centro Cultural CEEE Erico Verissimo), na Rua da Praia, ou o Paço Municipal, na Praça Montevidéu.
Já a vertente arrojada e modernista se manifestou, por exemplo, no edifício Guaspari, construído em 1936 e recentemente restaurado para hospedar as Lojas Lebes.
Chão de vidro
A Galeria Chaves é obra do engenheiro-arquiteto paulista Agnelo de Lucca, em colaboração com o austríaco Egon Weindorfer e o espanhol Fernando Corona. Foi levada a cabo pela construtora Azevedo Moura & Gertum, contratada por Ilse Chaves Barcellos, que a batizou em homenagem ao marido, o empresário Pedro Chaves Barcellos, já falecido na época.
A viúva não economizou recursos para dotá-la de beleza e glamour.
As paredes e colunas internas do pavimento principal são de mármore italiano, da região de Botticino, de acordo com matéria do Estado do Rio Grande de 21 de agosto de 1930. Originalmente, uma claraboia cobria a parte central, iluminando o ambiente interno – retirada na década de 1960, foi substituída por estrutura similar na reforma de 2011.
No centro da galeria, um piso de ladrilhos de vidro permitia a passagem da luz do pavimento térreo para o subsolo.
O jornalista Emílio Pacheco recorda que o pai se gabava de assustar amigos de fora da cidade que visitavam a galeria. No instante em que um dos forasteiros estava com os pés sobre as lajotas transparentes, ele gritava:
– Cuidado com o vidro!
A pessoa dava um pulo, com a sensação de que o piso iria se espatifar sob seus pés. Ao contrário da claraboia, reposta no teto da galeria, o chão de vidro já não existe, exceto como imagem congelada do passado.
Salão de estar
Para se ter ideia da excitação causada pela abertura da Galeria Chaves na abertura da década de 1930, consta que, entusiasmado, o intendente (cargo equivalente a prefeito) Alberto Bins sugeriu construir um viaduto para ligar a passagem coberta ao Mercado Público, ao discursar no ato de inauguração, ideia abandonada logo após a cerimônia.
Não bastassem os traços de inovação do espaço comercial, a Galeria Chaves abria um corredor para conectar dois polos nervosos da animada rotina do Centro de Porto Alegre da época. De um lado, estava o Abrigo de Bondes da Praça XV, para onde convergiam as linhas procedentes de bairros e arrabaldes, e, de outro, a Rua da Praia, que abrigava os principais pontos de sociabilidade dos porto-alegrenses.
– A Rua da Praia era o grande salão de estar da cidade, descreve Vlademir Roman.
Sem dúvida, era o eixo comercial, social e cultural da capital do Estado naquele tempo. A poucos metros da galeria estava a tradicional Casa Masson, referência no comércio de joias e relógios desde 1871, além da Livraria do Globo, reduto de intelectuais que ficava de portas abertas até dez horas da noite.
Na Rua da Praia, se concentravam cinemas, bares, cafés e confeitarias, que estimulavam a prática do footing, hábito que consistia em caminhar pelas calçadas para apreciar o movimento e ser visto pelo olhar curioso dos transeuntes.
– Aquela era a época da elegância, diz o comerciário aposentado Luiz Carlos Laurindo, de 82 anos, sentado à mesa do Café Chaves, levantando subitamente os olhos das palavras cruzadas.
Em seguida, ele complementa, com ar saudosista: – As mulheres usavam chapéus para ir ao cinema e os cavalheiros andavam de camisa branca, com terno e gravata.
Luiz Carlos frequenta a galeria desde a década de 1940, quando descia do bonde na Praça XV, agarrado à mão do pai, para passear no Centro.
– Na Rua da Praia, sempre se tinha o que fazer, nem que fosse só passear.
Kátia Nogueira da Rocha, de 73 anos, é outra frequentadora que guarda nítida a recordação de cruzar a galeria em direção à Rua da Praia – aos oito anos de idade, saía com os pais e três irmãos do bairro Petrópolis para olhar as vitrines de lojas como a Sloper, mesmo em horário noturno.
– Não tinha esse perigo de hoje. Era o programa de fim de semana da família.
Atualmente, ela junta o passado e o presente quando se desloca até a galeria para fazer compras ou simplesmente jogar conversa fora com as moças que atendem na Loja Profana, de moda feminina.
– Sou uma que adotou a Galeria Chaves não só porque guardo um bocado de lembranças, mas por ter um carinho enorme pelas meninas da Profana, que são muito mimosas. Na minha faixa de idade, a pessoa gosta de ser bem recebida.
A Galeria Chaves está inscrita na memória afetiva de muita gente.
A jornalista Nazaré de Almeida não esquece o tempo em que, ainda criança, acompanhava a avó Júlia nas visitas ao cardiologista num dos andares superiores do edifício.
Na Rua da Praia, a menina tinha direito a um sorvete de morango ou creme. Já dentro da galeria, a parada obrigatória era a Casa Beethoven, especializada em instrumentos musicais – afinal, Nazaré havia aprendido a tocar piano antes mesmo de se alfabetizar. A loja também vendia partituras e bustos de mármore de compositores famosos.
– Ganhei um de Chopin, que era pisciano como eu.
Como havia um piano de cauda na loja, a avó fazia com que a neta tocasse peças como Sonata ao Luar, de Beethoven, Tristesse, de Chopin, ou alguma valsa de Strauss, para deleite do público que atravessava o corredor da galeria.
– Ela me exibia, toda orgulhosa. Hoje também tenho satisfação de exibir os feitos de meus netinhos e bisnetos, comenta Nazaré.
As aventuras de Flash Gordon
O comerciante de mais idade da galeria é Nilo Sehn, de 85 anos, visto diariamente de oito da manhã até três e meia da tarde junto ao caixa da loja de discos Via Imports.
– Estou aqui há 35 anos. Quem toma gosto pelo negócio com discos não sai mais. É um vício.
É verdade. Antes de abrir a loja com o nome de Discoteca – a troca da marca se deu quando passou a propriedade do estabelecimento para a filha Ana Paula, que mora na Florida (EUA) –, foi representante da gravadora RGE no Estado, cargo que acumulava com a representação comercial também dos eletrodomésticos da Philco.
Nilo trabalha desde moleque, quando juntava pedaços de osso e vidro nas calçadas para negociar no ferro-velho. Aos domingos, carregava garrafinhas de um licor caseiro preparado pela mãe para vender durante o intervalo dos jogos de futebol de várzea no campo do União dos Onze, em frente ao Hospital Militar, na Avenida Cristóvão Colombo.
– A mãe nunca deu dinheiro para ir ao cinema. Tinha que me virar na rua, honestamente, conta ele.
Além disso, ganhava 400 réis de donos de restaurantes do Mercado Público para ir buscar de bonde as toalhas de mesa limpinhas e cheirosas nas casas das lavadeiras.
– Aquilo pagava o ingresso para assistir ao seriado do Flash Gordon e ainda sobrava um trocado para o pacote de bala.
A Galeria Chaves tem tradição em lojas de discos. Veja abaixo as etiquetas de algumas delas (reprodução do blog de Emílio Pacheco).
Uma das mais populares, a King’s Discos, tinha cabines individuais onde se podia escutar long-plays com fones de ouvido.
– Era a primeira a receber os lançamentos e a única a manter praticamente tudo em estoque. O que a pessoa não encontrasse na King’s dificilmente acharia em outra loja, avaliza Emílio Pacheco.
Ele se tornou cliente da King’s ainda criança ao ganhar de presente a série Disquinho, da gravadora Continental, com discos coloridos (em vermelho, amarelo, verde, azul e lilás) que traziam histórias infantis como Chapeuzinho Vermelho, Alice no País das Maravilhas, Pinóquio e Branca de Neve. A trilha sonora vinha adaptada por João de Barro, o Braguinha, e orquestrada por Radamés Gnattali. Que luxo!
A tradição dos vinis – a galeria chegou a ter 13 casas de discos – é também mantida por lojas como a Classic Rock, que está instalada no segundo piso desde 1994.
– Vender discos é uma paixão que a gente não larga, confere o proprietário Luiz Carlos Fonseca, que ingressou no ramo em 1983, no subsolo da galeria Luza, na Rua Marechal Floriano.
Marca da enchente
A loja mais antiga do centro de compras é a Pódium Troféus. Em agosto de 2011, como parte dos atos de reinauguração da galeria, após as obras de restauração, a proprietária Maria de Lourdes Trápaga recebeu simbolicamente do então prefeito José Fortunati a chave do estabelecimento.
Na verdade, Maria de Lourdes trabalha ali desde meados dos anos 1970, quando se integrou ao empreendimento que tinha sido aberto pelos sogros – já falecidos – no subsolo da galeria em 1949. A loja é famosa devido às gravações manuais em metal para alianças, placas, troféus e medalhas personalizadas com o nome dos clientes.
– Não conheço outra na cidade que tenha movimento igual, diz ela, que também comanda a Cia. das Placas, no primeiro andar.
A restauração foi iniciativa do empresário paranaense Augusto Dall Oglio, que adquiriu a galeria da família Chaves Barcellos na década de 2000.
– A reforma buscou preservar o charme da galeria e ao mesmo tempo garantir segurança, comodidade e facilidades aos cerca de 50 inquilinos e seus clientes, diz Araquém Idiart Gomes, administrador da Galeria Chaves.
Um exemplo de conciliação de presente e passado é o par de elevadores de ferro gradeado – hoje automatizados –, guiados na segunda metade da década de 1930 por um adolescente recém-chegado à capital do Estado, de nome Leonel Brizola.
Para quem não sabe, a profissão de ascensorista na Galeria Chaves antecedeu a carreira política do futuro prefeito de Porto Alegre e governador do RS e do RJ.
Histórias como essas encantam frequentadores, clientes e lojistas, alguns dos quais são tão apaixonados pela trajetória da galeria que se dedicam a estudá-la.
É o caso de Maria Elisabeth Colonetti, que muito antes de abrir o Kioske 11 – Capas e Pratas no subsolo havia feito um trabalho acerca do centro de compras quando estudava no Colégio Uruguai, no bairro Moinhos de Vento.
– Pesquisei em arquivos de jornais e recolhi depoimentos já naquela época, conta Maria Elisabeth. A seguir, ela aponta para a marca que a enchente de 1941 deixou numa das paredes do subsolo: – Olha só isso, não é incrível? Essa galeria faz parte da história de Porto Alegre, conclui.
(*) Pesquisa de Rosane Lopes