Viagem ao coração da África

Radicado há 40 anos em moçambique, o cineasta licínio azevedo conta uma história de amor em meio à guerra civil em COMBOIO DE SAL E AÇÚCAR

Na trama de Comboio de Sal e Açúcar, mulheres viajam 700 km de trem até Malawi numa viagem de alto risco, com emboscadas e linhas sabotadas (Fotos/Divulgação)

Na trama de Comboio de Sal e Açúcar, mulheres viajam 700 km de trem até Malawi numa viagem de alto risco, com emboscadas e linhas sabotadas (Fotos/Divulgação)

Uma camponesa se adiantou para passar um pano umedecido no rosto da figura de pele clara, com cabelos até a cintura e uma barba espessa que se estendia quase até o peito.

Ao perceber que os movimentos junto à face da criatura desconhecida não surtiam efeito, ela deu um passo atrás e perguntou aos que estavam próximos:

– Afinal, mulher branca usa barba?

Na verdade, quem se postava diante da aldeã era Licínio Azevedo, cineasta, escritor e jornalista porto-alegrense nascido em 1951, que havia adotado o visual hippie nos anos 1970. Ele acompanhava, em 1977, a comitiva de Luís de Almeida Cabral, primeiro presidente da Guiné Bissau após a libertação de Portugal, em viagem aos confins do país.

Os olhos assustados da campesina tinham explicação – ela não via um indivíduo branco do sexo feminino desde que iniciara a guerra de libertação, mais de dez anos antes.

Noutra ocasião, no Planalto de Mueda, na região norte de Moçambique, a reação dos habitantes à chegada de Licínio se mostrou ainda mais drástica – as crianças fugiram para o mato. Não era para menos, afinal, a recordação mais recente que tinham de homens brancos remetia à violência praticada pelos soldados portugueses.

Os elementos de espanto e estranheza, no entanto, ficaram para trás. Radicado há quatro décadas em Moçambique, Licínio é atualmente um dos mais premiados cineastas do continente africano.

Comboio de Sal e Açúcar, seu filme mais recente, entrará em cartaz no dia 7 de junho em 20 cidades brasileiras. Em Porto Alegre, foi apresentado em pré-estreia nesta segunda-feira, dia 4, na Cinemateca Capitólio, antes de ganhar a tela do Guion Center 3 e no Espaço Itaú Bourbon.

O filme conquistou o prêmio de melhor produção na 26ª edição do The Pan African Film & Arts Festival em Los Angeles (EUA), em fevereiro deste ano – na mostra, Licínio foi indicado o melhor diretor de ficção.

No Festival de Locarno, na Suíça, um dos mais antigos do mundo (realizado desde 1946), Comboio de Sal e Açúcar recebeu o Boccalino d’Oro, premiação da Crítica Independente da Itália, na categoria de melhor produção. O trabalho foi premiado ainda em festivais na Tunísia e na África do Sul.

Clique na imagem abaixo para ver fotos de cenas de Comboio de Sal e Açúcar.

No elenco, está o brasileiro Thiago Justino, intérprete do Dr. Jonatas de Orgulho e Paixão, novela da Rede Globo, além de Matamba Joaquim, Melanie de Vales Rafael, António Nipita e Sabina Fonseca.

Baseada em livro homônimo de Licínio, a produção é uma história de amor ambientada no cenário da guerra civil moçambicana, que começou em 1977, dois anos após a independência, e só teve um tratado de paz assinado em 1992, embora os conflitos ainda não estejam sanados até hoje.

Com a economia local destruída, as mulheres descobrem uma maneira de sustentar suas famílias – se deslocar de trem de Nampula (província da região norte do país, junto ao Oceano Índico) até o Malawi para trocar sal por açúcar, produto em falta em Moçambique.

Hoje, o tempo para percorrer o trajeto de 700 km é de um dia, mas nos anos 1980 – época em que se passa o filme – podia se estender por um prazo de três semanas a três meses, quando não era interrompido por armadilhas ao longo do caminho.

– Era uma viagem de alto risco, com linhas sabotadas e ataques ao comboio. As pessoas podiam ser raptadas ou mortas, comenta Licínio.

Na trama, a enfermeira Rosa – a caminho de um hospital em outra cidade, onde irá trabalhar – se apaixona pelo tenente Taiar, um dos militares responsáveis pela segurança do comboio.

– Como era de se esperar, a história acaba tragicamente. Choro sempre quando assisto ao filme, diz Licínio.

Assista a seguir ao trailer de Comboio de Sal e Açúcar.

Três garrafas de rum

No começo dos anos 1970, Licínio chegou a cursar Direito na PUC/RS, mas abandonou a faculdade com a intenção de percorrer a América Latina como mochileiro. A viagem foi curta – não foi adiante do Uruguai, onde se apaixonou pela artista plástica Viviana Araujo, com quem se casou e teve uma filha, Clarice.

De volta à capital gaúcha, por influência de amigos como Caco Barcellos e Emílio Chagas, virou jornalista – enquanto cursava a Famecos, na PUC/RS, trabalhava na editoria de Polícia de Zero Hora.

O que o atraía na profissão era a possibilidade usar as ferramentas do New Journalism, escola norte-americana que adota um tratamento literário para a elaboração dos textos das reportagens, como pregavam autores como Truman Capote, Hunter S. Thompson, Norman Mailer e Tom Wolfe, entre outros.

A carreira deslanchou mesmo na Folha da Manhã, jornal que marcou época na década de 1970, com uma linha editorial independente sob o comando de Ruy Carlos Ostermann.

Na Folha da Manhã, Licínio era editor de Polícia e tinha como repórter Caco Barcellos, hoje um dos principais nomes do jornalismo da Rede Globo.

Em 1975, uma reportagem assinada por Caco denunciava “partidas de futebol” numa delegacia de Canoas, nas quais os presos eram agredidos com pontapés, como se fossem a bola do jogo. A reportagem desagradou à Secretaria de Segurança do RS, que exigiu o afastamento de Caco junto à direção da empresa Caldas Jr. Demissão consumada, 20 jornalistas – entre eles, Licínio – pediram as contas, em solidariedade ao colega.

Pela segunda vez, Licínio caiu na estrada para conhecer o continente latino-americano. Desta vez, chegou até a Guatemala, acompanhado por Caco e sua mulher, a fotógrafa Avani Maenfeld Stein, viajando de carona por terra e, vez por outra, na boleia de aviões militares.

Na madrugada de 4 de fevereiro de 1976, na fronteira da Guatemala com a Nicarágua, depois de três garrafas de rum, sentiram as paredes do hotel vibrando – Caco chegou a cair da cama –, e não era por causa do porre.

Tratava-se do maior terremoto da história da Guatemala, com 26 mil mortos.

Licínio, Caco e Avani – que estava grávida – saíram a campo para cobrir a tragédia, ao mesmo tempo em que participavam do trabalho de socorro aos feridos, ajudando a servir sopões nos hospitais de campanha.

De volta ao Brasil, venderam o material para o Jornal da Tarde, de São Paulo, por uma boa grana.

Licínio Azevedo (à dir.): espírito de aventura conduziu o cineasta e jornalista aos cenários de episódios históricos marcantes de seu tempo

Licínio Azevedo (à dir.): espírito de aventura conduziu o cineasta e jornalista aos cenários de episódios históricos marcantes de seu tempo

Feiticeiro da aldeia

Longe de refrear, os sobressaltos na Guatemala estimularam ainda mais o espírito aventureiro de Licínio.

Em seguida, ele partiu para a África. Em 1977, publicou o livro Diário da Libertação, coescrito por Maria da Paz Rodrigues, sobre a guerra anticolonial na Guiné Bissau.

Em Moçambique, passou a realizar pesquisas para a produção de roteiros do Instituto Nacional de Cinema, que contava com a assessoria de Jean-Luc Godard, Ruy Guerra e Jean Rouch nas atividades de formação de cineastas.

Os depoimentos colhidos entre os habitantes que viveram a luta pela independência do país serviram de base para o segundo livro de Licínio, Coração Forte: Relatos do Povo Armado, publicado em 1982.

A obra foi adaptada para o cinema em 1985, transformando-se no primeiro filme de ficção produzido em Moçambique, com o título de Tempo de Leopardos e direção do iugoslavo Zdravko Velimirović.

Radicado em definitivo no país do sudeste africano, Licínio estreou no cinema com o documentário A Colheita do Diabo, de 1988, mas ele atribui a Marracuene, de 1990, a primeira investida numa linguagem mais experimental e arrojada no gênero documental, que não se limita à mera junção de imagens coladas por um texto explicativo.

– A estrutura de documentário que me atrai é a de contar histórias com pessoas dialogando entre si e vivendo o cotidiano diante da câmera, explica.

A fronteira tênue entre as linguagens de registro histórico e ficção ganhou força em Desobediência, de 2002, que tem como ponto de partida uma pequena notícia de jornal dando conta do suicídio de um homem numa zona remota do país.

O sujeito teria se enforcado em virtude de uma decepção com o comportamento desobediente da esposa.

O cineasta convenceu os habitantes da aldeia em que se deu o episódio a representarem a si próprios diante da câmera com o intuito de filmar uma história híbrida de ficção com personagens verdadeiros. Entre eles, estava o irmão-gêmeo do suicida, que assumiu o duplo papel.

Como ninguém na localidade conhecia cinema e, além disso, a televisão ainda não havia chegado até ali, os personagens entenderam que a encenação era para valer e propiciava uma segunda chance de viver a realidade dos fatos.

Assim, as desavenças entre as famílias se acentuaram e houve até uma tentativa de matar a mulher responsabilizada pela morte do enforcado. Só ao final da filmagem, quando entrou em ação o feiticeiro da aldeia, a verdade veio à tona.

– Existe um tabu na região proibindo que gêmeos façam amor com a mesma mulher. O rapaz tinha transado com a esposa do irmão e, por isso, se matou. Os familiares dele, então, inventaram a versão da desobediência da companheira para encobrir a vergonha que estavam sentindo, conta Licínio.

Encaminhado ao Festival Internacional de Programas Audiovisuais, em Biarritz, na França, Desobediência teve a inscrição recusada como documentário, mas aceita como ficção – mais que isso, ganhou o troféu de prata nesta categoria.

Esquina Maldita

Já enraizado na vida cotidiana do país, o cineasta ainda se mostra encantado com o senso de humor e a capacidade de resistir às dificuldades da vida do povo moçambicano.

Entre os políticos de Moçambique, admira, sobretudo, Samora Machel, primeiro presidente da nação, que governou de 1975 a 1986 e “morreu completamente pobre”, como sublinha:

– Antigamente, os políticos eram puros. Hoje, poucos são fieis aos ideais da época da libertação, afirma ele.

De outra parte, os tempos de paz estão novamente ameaçados, desta vez, pela invasão do norte do país por grupos islâmicos ligados ao Al Shabaab, que vêm da Somália.

Licínio se mantém como produtor independente, sustentando-se principalmente com a realização de filmes educativos sobre saúde, educação, meio ambiente e agricultura, demandados por ONGs europeias.

Casado com Sandra Po, moçambicana de origem indiana, vive também com a filha Anais (o nome é homenagem à escritora francesa Anaïs Nin), de um casamento anterior.

Aluna exemplar de matemática e física, a garota surpreendeu o pai ao pedir uma câmera como presente de aniversário de 16 anos. Ela deseja filmar mergulhos no mar, um de seus passatempos preferidos.

– Pensei que ela poderia se dar bem na vida e ganhar dinheiro, mas pelo jeito pegou o vício do pai, brinca Licínio, orgulhoso, mas fingindo estar zangado.

Da vida em Porto Alegre, guarda boas lembranças, como as da época em que frequentava a Esquina Maldita, gueto boêmio da juventude alternativa da cidade na década de 1970.

Reza a lenda que teria sido ninguém menos do que Licínio Azevedo o criador da expressão Esquina Maldita para identificar o ponto de boemia localizado na junção da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite, perto do campus central da UFRGS.

– É verdade, sim. Trabalhava na Folha da Manhã e, depois do expediente, saia direto da redação para o Alaska, onde ficava conversando até de madrugada sobre política e literatura com os amigos, confirma o cineasta e jornalista.

No primeiro momento, não recorda a motivação, mas logo em seguida vem à mente que estava lendo naquele período As Flores do Mal, de Baudelaire.

– Acredito que veio daí a inspiração para batizar o lugar de Esquina Maldita. O nome pegou e todo mundo passou a chamar desse jeito, conclui.