Música e amizade
Arte e vida inspiram as canções de Chico Chico, filho de Cássia Eller, e João Mantuano, parceiros na banda 13.7
Na certidão de nascimento, consta Francisco Ribeiro Eller, 24 anos, filho da cantora Cássia Eller, mas pode chamar de Chico Chico, nome artístico adotado pela "sonoridade e simplicidade".
Já o nome de batismo foi dado em homenagem à canção Francisco, de Milton Nascimento, que a mãe gravou quando estava grávida, em participação especial no disco Ioiô, de Nelson Faria.
Enquanto punha a voz na melodia, o bebê se espreguiçou dentro de sua barriga, o que fez com que ela decidisse de imediato que se chamaria Francisco, caso nascesse menino.
Igualmente, João Mantuano, 22 anos, foi moldado numa matriz de arte.
É filho do casal de bailarinos Paulo Mantuano e Márcia Feijó – o pai fez parte da Intrépida Trupe, formada na década de 1980 por artistas originários da Escola Nacional de Circo, ao passo que a mãe, após participar de companhias como o Grupo Corpo, atualmente é vice-diretora da Faculdade de Dança Angel Vianna, no Rio de Janeiro.
FORA DA CURVA
Na segunda-feira, 14 de maio, Chico e João subiram ao palco do Bar Ocidente, para a primeira de quatro apresentações no Sul do Brasil e no Uruguai, preparados para uma jornada de frio.
Além de gorro, Chico Chico – embora seja vascaíno – vestia uma jaqueta de inverno do Clube Atlético Mineiro.
Bastaram duas canções do concerto de voz e violão para que a dupla carioca se livrasse de casacos e acessórios de inverno – naquela noite, o outono porto-alegrense ainda resistia a abrir espaço para uma primeira corrente de ar gélido.
Chico e João também são parceiros na banda 13.7, que acaba de lançar Medo, primeiro de uma série de singles com as faixas do CD que sairá no segundo semestre pelo selo Toca Discos – Miguel Dias (baixo), Pedro Fonseca (teclados) e Lucas Videla (percussão) completam a formação.
Na quarta-feira, dia 16, foi divulgado o clipe oficial de Medo.
Diferentemente do primeiro disco de Chico, com a banda 2x0 Vargem Alta, de 2015, bastante acústico e ancorado em violões, as canções que estão sendo gravadas com a 13.7 aparecem numa roupagem pop, “mas um pop estranho”:
– A gente procura fazer coisas meio fora da curva, salienta ele.
– Até para não cair na mesmice, complementa João, puxando a cadeira para se integrar à conversa.
A 13.7 mistura ritmos como samba e blues com pitadas de rock e MPB, além de enquadrar melodias marcadamente brasileiras em andamentos aparentemente desencaixados, como foxtrot ou jazz cigano, o que resulta numa sonoridade singular.
– Não é querer ser original, mas é realmente uma coisa nova, que dialoga com várias influências, é claro, resume Chico.
Na moldura dos acordes, aparecem tramas com paisagens e personagens da cena urbana, tão bela e desarmônica quanto um cartão postal ao avesso.
– Falamos de coisas bonitas e também da sujeira e do caos, que são igualmente belos, aponta Chico.
– As composições traduzem o que a gente é, como se fosse uma identidade, acrescenta João.
– Ou a busca de uma identidade, corrige o parceiro, e os dois riem juntos, achando divertido o jogo de definir algo que escapa entre os dedos como água.
Sobra espaço ainda para um diálogo com os “malditos” dos anos 1970 e a vanguarda paulistana.
– Itamar Assumpção é o rei do mundo, enaltece Chico.
João destaca “o charme e a postura elegante” de Luiz Melodia, evidentes desde o primeiro disco do compositor do Estácio de Sá, Pérola Negra, de 1973.
– Aquelas letras... Cada canção tem só dois ou três minutos, mas parece que dura muito mais pela profundidade do conteúdo, elogia.
Por essas e outras, não é raro que Chico e João incluam no repertório releituras de canções não só de Itamar e Melodia, mas também de Belchior e Sérgio Sampaio.
Blitz na lagoa
Amigos de infância, desde quando eram colegas no CEAT (Centro Educacional Anísio Teixeira), Chico e João começaram a se apresentar juntos no palco há cerca de dois anos.
Aliás, tanto os demais integrantes da banda 13.7 quanto os músicos envolvidos no disco anterior de Chico também frequentaram o CEAT, escola do bairro Santa Teresa, na zona central do Rio de Janeiro, conhecida por estimular a afeição dos alunos pela arte e a cultura.
As amizades e os projetos se entrelaçam – cada um tem composições e trabalhos próprios, ao mesmo tempo em que se envolve em iniciativas comuns, alternando as parcerias.
O show apresentado pelo duo no Ocidente é apenas um exemplo disso.
– Intimidade é bom, mas também é uma merda, ressalta Chico, achando graça novamente dos paradoxos da vida. A seguir, ele argumenta: – É bom porque existe uma predisposição à aceitação do trabalho um do outro, então, você pode mostrar uma nova canção, que acabou de fazer, sem receio. Por outro lado, de vez em quando a gente briga, e briga mesmo, mas depois faz as pazes e se ama de novo.
– Cada um tem personalidade forte e faz questão de mostrar isso, mas é preciso trabalhar coletivamente, diz João, com ar de organizador da banda.
As diferenças de estilo, ao final das contas, servem para complementar e não separar a parceria.
João cria personagens, enquanto Chico parece vivê-los com sua presença de palco.
João gosta de contar histórias, montar cenários e amarrar enredos com o rigor de um roteirista musical.
Chico aparenta estar sempre falando de si próprio, ainda que não o esteja, num tom direto e confessional, com sua voz de timbre rascante.
O que mais importa é que a música seja um reflexo do que se vive aqui e agora.
O primeiro disco de Chico seguia as pegadas de uma viagem de bicicleta que fez com o amigo Tui (Artur Lana), partindo de São Mateus, no Espírito Santo, até chegar a Aracaju, em Sergipe.
No total, um mês e meio de pedaladas pela areia da praia, com mochilas nas costas e violões amarrados às bikes – a fotografia que ilustra a capa do álbum é a imagem congelada de uma pausa no meio do caminho.
– A gente gosta de se soltar, até porque ainda não descobriu tudo na vida, comenta Chico.
Às vezes, a barra pesa, mas quando isso acontece é justamente o momento de pegar leve e inventar uma saída com ironia e bom humor.
Exemplo?
O nome da banda – 13.7 – é referência à quantidade de maconha apreendida com Chico pela Polícia Militar do RJ numa blitz na Lagoa Rodrigo de Freitas, às vésperas de uma sequência de shows na Ilha Grande, em Angra dos Reis, em dezembro de 2015.
Até pouco tempo, Chico se mostrava desconfortável diante das indagações de fãs e jornalistas acerca da relação com a mãe.
Na vida pessoal, a bisbilhotice girava principalmente acerca da experiência de ter sido criado por duas mães – além de Cássia, a companheira da artista, Maria Eugênia Martins, que ficou com a guarda de Chico após a morte da cantora, em 2001. Na época, o menino tinha oito anos.
Até certo ponto, a curiosidade é natural – as semelhanças de mãe e filho saltam aos olhos. Os traços pintados no rosto, a irreverência e o sorriso de moleque, a interpretação visceral das canções.
Só que, além da timidez de abordar questões íntimas, o que o incomodava era que se deixasse em segundo plano a trajetória musical que ele está construindo.
Hoje, a resistência parece estar mais bem resolvida:
– Tranquilo, pode perguntar, sem grilo, diz ele. Depois, explica: – Isso vem mudando um pouco, o que é bom. O público está conhecendo mais o meu trabalho, que vai ganhando consistência.
Talvez a principal afinidade de Cássia e Chico seja a necessidade quase orgânica de soltar a voz e o verbo:
– Se eu não cantar as coisas que eu tenho para falar, vou ficar com elas presas aqui {aponta para a garganta}. Mas não corro esse risco, porque é algo que escolhi fazer, garante o rapaz.
– Não me imagino fora da música. Eu me descobri e descobri o mundo através da composição, ratifica João.
De olho no cenário atual do País, Chico acredita que a proliferação de discursos de ódio e intolerância, que atinge a área cultural – como no caso do cancelamento da exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, em Porto Alegre –, está gerando, como contrapartida, a urgência de uma expressão de liberdade e identidade:
– As pessoas querem dizer: “Porra, sou de tal jeito e quero me inserir de tal maneira em tal lugar”. E o nosso trabalho é comunicar, fazer com que elas sintam o ímpeto de se manifestar, seja pela arte ou não.
Depois do show no Ocidente, Chico e João, acompanhados do produtor Oscar Vasconcelos, alugaram um carro para cumprir o roteiro de shows no sul do RS e no Uruguai e, ao mesmo tempo, curtir a paisagem do pampa.
Na agenda, apresentações no Bar e Restaurante Diabluras, em Pelotas, e no Bar Esquina, em Montevidéu. Na volta, uma parada em Bagé para um concerto na Vila de Santa Thereza.
A dupla retornou ao Rio de Janeiro a tempo de participar, dia 23 de maio, do show Amar e Mudar as Coisas, no SESC Copacabana, espetáculo em que a cantora Daíra, namorada de João, ao lado de convidados, homenageou o cantor e compositor cearense Belchior, que morreu em abril do ano passado.
A homenagem contou também com a presença de Jards Macalé, outro artista dos anos 1960 e 1970 reverenciado pela galera de Chico Chico.