Gente da noite
As histórias de vida de Maurício no posto avançado do bar 512
Quase todo mundo que frequenta a Rua João Alfredo conhece o Maurício, guardião da porta do Espaço Cultural 512, um dos bares mais movimentados da Cidade Baixa.
Pouca gente imagina que, na realidade, quem recebe os clientes não é o Maurício, e sim o Atarlan da Costa.
— Atar o quê? Pode repetir?
Aí é que está. Justamente para escapar dessa pergunta, o rapaz pediu emprestado o nome de um colega de trabalho na época em que trabalhava numa fábrica de banheiras de hidromassagem. Deixa ele explicar:
— Não tem uma pessoa na vida que ouviu meu nome verdadeiro e não me fez repetir duas ou três vezes. Para evitar esse tipo de coisa, passei a usar o nome de guerra Maurício, que é como o pessoal me conhece.
Mas, espera aí. Fábrica de banheiras de hidromassagem? Que história é essa?
Criado no bairro Intercap, na zona leste de Porto Alegre, Maurício não nasceu pronto e acabado para desempenhar os ofícios de porteiro e segurança de locais boêmios, ocupações que, aliás, exerce com sabedoria, simpatia e praticidade.
Antes disso, engoliu muita poeira ao recortar fibras de vidro, material de que são feitas as banheiras apropriadas para hidromassagem.
— O pó gruda na roupa. É tanta poeira que fica até difícil enxergar o que está na frente.
Quando passou a praticar artes marciais como aikido (de origem japonesa) e muay thai (boxe tailandês), conheceu trabalhadores da área de segurança, o que fez com que buscasse novos ares. Por indicação, conseguiu vaga em dois hospitais – Ernesto Dornelles, no bairro Santana, e Instituto de Cardiologia de Viamão.
Os macetes da profissão de segurança ele aprendeu rápido. A dificuldade era o coração generoso lidar com a perda de amizades que conquistava no serviço.
— Tu conversa com a pessoa hoje e, no outro dia de manhã, recebe a notícia de que ela morreu. Tem gente que consegue desligar, eu não.
Com o tempo, resolveu não criar intimidade com os pacientes. Era o jeito de não sofrer. Outra coisa que o incomodava era a precariedade da estrutura de atendimento de saúde, principalmente para a população mais pobre.
A experiência de segurança em casas noturnas iniciou em inferninhos da região da Avenida Júlio de Castilhos, perto do Camelódromo, no Centro Histórico.
— Lá não tem zona de conforto. Toda a noite é de confusão.
O período foi de ensinamentos. Aprendeu, por exemplo, a saber com quem estava lidando. Na primeira casa em que trabalhou, o gerente foi logo avisando:
— Está vendo aquele sujeito? Ele tem as costas quentes. Não põe a mão nele, mesmo que arrebente a cabeça de alguém com uma cadeira. Se aprontar, me chama e deixa que eu resolvo.
Soube ali que cada boca tem um dono e que malandro não mexe em vespeiro. Mais que isso, achou um ponto de observação da vida como ela é, sem choro nem vela. Com isso, desenvolveu a capacidade de perceber a índole só de olhar para a pessoa.
Não é de admirar que tenha se sentido aliviado quando surgiu a chance de labutar em áreas mais amenas.
Na Cidade Baixa, fez pit stop no Bongô antes de trabalhar no 512, a princípio apenas nas rodas de samba do Instituto Brasilidades, que aconteciam aos domingos em frente ao bar (atualmente, o evento ocorre no Museu Joaquim Felizardo). Dali a pouco, foi contratado em definitivo para cuidar da porta.
— Aqui é um público diferenciado. Acaba formando uma família. Dá gosto vir trabalhar toda a noite.
No posto avançado, escuta muitas histórias. É uma figura que inspira confiança, o que faz com que as pessoas se abram. No redemoinho da noite, em algumas ocasiões é inevitável que vire uma espécie de psicólogo da portaria.
— Já salvei pelo menos uns quatro casamentos dando conselhos sobre a relação, assegura ele.
Claro, sempre tem as figuras bocas brabas, que sobram para ele. Afinal, outra parte da função no 512 é exercer a segurança do bar.
— O que mais incomoda é o tipo bêbado machão. Sabe que está errado e passou do limite, mas quer plateia. Quando mais gente em volta, mais ele quer se engrandecer.
Nessas ocasiões, o protocolo recomenda uma conversa ao pé do ouvido para tentar solucionar a pendenga pelo bom senso. É difícil, às vezes precisa gastar muita lábia para fazer a pessoa reconhecer que está errada.
Em último caso, o jeito é conduzi-la sem mais delongas até a porta de saída. Seja como for, a regra é jamais usar a violência.
— Não é meu papel, não estou ali para isso. Se arrumar briga, estou na profissão errada. Além disso, se eu der um soco, a coisa vira uma questão pessoal. Um homem nunca esquece um tapa na cara.
Cabe a pergunta: como preservar a frieza em situações tensas como essas? Ele relata que não fez curso de segurança.
— Tudo é controle emocional. Arte marcial ajuda, mas é a vida que te ensina.
Outra situação embaraçosa é socorrer quem perdeu a estribeira ao mergulhar de cabeça na Cachaça da Chica ou num dos drinques do 512, a exemplo da Maracangalha ou da Disritmia.
Não espalha, mas Maurício já carregou garotas desmaiadas no colo – com todo zelo e cuidado – para dar-lhes um destino seguro. Cá entre nós, rapazes também.
O procedimento padrão é localizar alguma amiga/amigo ou familiar para vir buscar a vítima de embriaguez. Já houve situação em que ele chamou um Uber e levou a pessoa até o HPS para estancar a bebedeira homérica.
Histórias da noite. É o que mais tem para contar, ainda que não seja boêmio. Exceção foi o tempo em que frequentou o Rock’N’Soul, na calçada oposta da João Alfredo. Saía do trabalho e esticava a madrugada. Por um lado, gostava de encontrar lá os clientes que recebia no 512, mas não demorou para compreender que, para ele, noite é sinônimo de trabalho.
— Se não trabalhasse, talvez saísse de vez em quando na balada, quem sabe aos fins de semana, não mais que isso. Até porque se foi o tempo da cerveja barata, não é mesmo?
Aos 39 anos, Maurício hoje segue o lema de viver um dia (ou uma noite) de cada vez. Tem a impressão de que, toda a vez que fez planos, deu tudo errado. Mas gosta da ideia de cursar no futuro uma faculdade de Educação Física, área com a qual se identifica e curte.
Não tem pressa de decidir. Afinal, desfruta de uma situação estável no 512, onde trabalha desde 2013.
— Seis anos não é a mesma coisa que seis dias, ainda mais na rotatividade da vida noturna. Algumas pessoas dão um tempo de frequentar o bar, viajam ou se casam, quando voltam percebo que se sentem bem de ver que ainda estou aqui. É uma sensação boa de que algo se preserva.
Rafael Corte, um dos sócios do 512, concorda em gênero e número. Ele costuma dizer que não é a direção da casa que seleciona as pessoas para o batente – quem faz a opção são os trabalhadores, que escolhem ficar.
— O Mauricio é um cara grande, forte, e quem o conhece sabe que o seu coração é ainda maior. Temos muita sorte de tê-lo ao nosso lado, completa Rafael.