O bofe nas vilas de malocas

Pesquisa mostra que visão preconceituosa sobre homossexualidade foi usada como pretexto para remoção de população pobre da área central para a periferia de Porto Alegre

Estudo se baseou em relatório da prefeitura de 1952 sobre vilas como a São José, na zona leste da cidade (Foto de 1956/Léo Guerreiro e Pedro Flores/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo)

Estudo se baseou em relatório da prefeitura de 1952 sobre vilas como a São José, na zona leste da cidade (Foto de 1956/Léo Guerreiro e Pedro Flores/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo)

A homossexualidade masculina foi um dos argumentos usados como justificativa para a transferência da população pobre de Porto Alegre de áreas centrais para a periferia da cidade, no século passado.

Essa é a afirmativa do historiador Rodrigo Weimer após estudar dados de um relatório administrativo sobre as “vilas das malocas” (hoje denominadas favelas) apresentado em 1952 pela prefeitura da capital gaúcha na Câmara de Vereadores. A conclusão é exposta por Weimer em artigo publicado há pouco mais de um mês pela revista Aedos, do PPG em História da UFRGS.

O relatório elaborado durante a gestão do prefeito Ildo Meneghetti aponta evidências de alcoolismo, prostituição e comportamento sexual não-normativo como exemplos de “sujeira moral”, “quisto social” e “situação anômala” no cotidiano dos favelados, o que teria servido de argumento e pretexto para a posterior expulsão dos “maloqueiros” para áreas distantes do Centro. Textualmente, o documento histórico afirma que casos “palpáveis surgiram à tona durante a pesquisa (da prefeitura), demonstrando que, se bem que em extremos, até que ponto pode chegar a imoralidade nesses grupamentos humanos”.

— Constata-se que, sob um viés moralista e uma visão preconceituosa, a sexualidade desviante foi considerada abjeta e, mais do que isso, aproximada à realidade da “maloca”, ela, também, impregnada de atributos pejorativos, destaca Weimer.

Em meados do século XX, esses conjuntos de moradias populares, que se caracterizavam pela precária infraestrutura urbana (sem acesso a água potável, esgoto e luz) e pelo frágil amparo jurídico (sem possibilidade de regularização da posse dos terrenos), estavam espalhadas pelas áreas centrais.

O relatório dos anos 1950 (atualmente sob a guarda do Arquivo Moysés Vellinho) faz um minucioso levantamento de vilas como a Caiu do Céu, na Azenha, que seria removida ainda naquela década para a construção do estádio Olímpico, do Grêmio. Outra favela mencionada é a Doca das Frutas, nas redondezas da antiga estação rodoviária, que ficava na esquina da Rua da Conceição com a Avenida Júlio de Castilhos. Segundo Weimer, as vilas populares demonstravam enorme capacidade de resiliência e mobilidade frente à ofensiva do poder público para desmantelá-las.

— Durante muito tempo, a Doca das Frutas, por exemplo, se comportou como uma hidra – cortava uma cabeça, apareciam outras três (refere-se ao monstro da mitologia grega com corpo de dragão e cabeça de serpente). Acabava aqui, ressurgia ali adiante. Há pelo menos três ou quatro reencarnações da Doca das Frutas, sempre nas imediações da velha rodoviária. 

Rodrigo Weimer: “Argumentos morais usados para empurrar pobres para áreas cada vez mais distantes”

Rodrigo Weimer: “Argumentos morais usados para empurrar pobres para áreas cada vez mais distantes”

O documento da prefeitura também cita a vila Santa Luzia, cujos casebres se perfilavam da Avenida Bento Gonçalves até o alto da colina dos cemitérios, no bairro Santo Antônio. A propósito, é justamente uma das malocas da Santa Luzia que chama atenção dos fiscais graças a uma configuração familiar pouco usual. A respeito dessa moradia habitada por três homens, o relatório registra: “No momento de serem visitados pelo assistente social, dois deles estavam vestidos de mulher, um lavando roupa e o outro a louça, enquanto o terceiro dizia ser o chefe deles”.

— Os que se vestiam de mulher trabalhavam para o homem que fazia o papel de provedor. Este, por sua vez, era o bofe da casa, explica Weimer.

A princípio, os homens que se vestiam de mulher e desempenhavam funções femininas nos afazeres domésticos (de acordo com os valores e costumes da época, diga-se de passagem) poderiam ser classificados hoje como “transexuais”, mas Weimer adota a precaução de não deslocar designações atuais para períodos históricos anteriores. Antes disso, prefere dizer que o exemplo mostrado pelo relatório constitui “performance de gênero não artística” ou “identidade de gênero desviante sem finalidade artística ou de exibição”.

— Aquele núcleo doméstico, não apenas homossexual como polígamo, era visto como uma excrescência. É importante salientar que esse caso não era isolado, mas uma circunstância corrente em outros ambientes nas vilas de malocas, acrescenta ele.

Em paralelo, o relatório oficial apresenta outras situações consideradas inadequadas, como a de um chefe de família alcoólatra e a de uma “casa de tolerância” habitada só por mulheres, com exceção de um menor de 15 anos de idade, que se apresenta como dono da unidade. Assim, o caso da família formada por três homens (sendo dois travestidos) é equiparado à prostituição e ao alcoolismo como forma de demonstrar a “imoralidade” em que viviam os moradores das vilas populares. Conforme o texto apresentado à Câmara Municipal, essas eram evidências de “promiscuidade, falta de higiene, baixa educação, consumo de álcool em grande escala e pobreza moral em que vivem alguns maloqueiros”.

Mais que isso, os homens que “se montavam” (expressão que, na gíria gay, significa vestir-se com roupas de mulher) também eram considerados “não produtivos”, uma vez que, segundo Weimer, “a respeitabilidade inerente à identidade de ‘trabalhador’ só era compatível com a pretensão à heteronormatividade, e tudo que fugisse disso colocava em questão o acesso a direitos, ao menos de acordo com a perspectiva oficial”.

— Neste sentido, os argumentos morais se casam com a categorização do maloqueiro em geral, cujo papel não corresponde ao que se espera de um trabalhador, assinala ele.

De qualquer modo, conforme o pesquisador, o movimento de exclusão das áreas centrais não se limitou aos moradores acusados de comportamento imoral, mas atingiu indistintamente todos os que viviam nas favelas, o que leva a crer que a decisão de transferir aquela população “precedia e independia” dos motivos alegados. Em outras palavras, as justificativas de desvios de conduta teriam como finalidade apenas produzir “um efeito retórico, sem garantia de direitos daqueles que atendessem aos rígidos e arbitrários padrões morais de Meneghetti”.

Imagem da vila Santa Luzia, em 1956, onde a prefeitura localizou na época família de três homens, sendo dois travestidos (Foto/Léo Guerreiro e Pedro Flores/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo)

Imagem da vila Santa Luzia, em 1956, onde a prefeitura localizou na época família de três homens, sendo dois travestidos (Foto/Léo Guerreiro e Pedro Flores/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo)

Essa não foi a primeira vez que argumentos de natureza moral foram aplicados para afastar os pobres. A historiadora Sandra Pesavento (1945/2009) havia demonstrado que, no começo do século passado, as populações que habitavam os cortiços (casarões em que viviam famílias amontoadas) tinham sido igualmente expulsas da área central para territórios periféricos na época, como o Menino Deus e o Quarto Distrito.

Naquela ocasião, também foram utilizados argumentos morais como justificativa – dizia-se, então, que os moradores dessas unidades eram sujos e degradados, e que em torno delas proliferavam alcoolismo e prostituição. A pesquisa de Weimer mostra que, em meados do século XX, esses mesmos argumentos foram “atualizados, sob alegações similares, acrescidas da questão da orientação sexual”.

O historiador diz ainda que, na década de 1950, as vilas eram relativamente recentes na paisagem da cidade e despertavam uma reação de estranhamento e pavor por parte das elites e camadas médias da população. Fora isso, eram focos de sujeira e doenças, o que sinalizava urgente necessidade de higienização. Outro fator de exclusão era representado pelo alto custo dos aluguéis nas regiões mais nobres, o que também empurrava os pobres para fora do perímetro central.

No caso da vila Santa Luzia, a expulsão de fato se deu nos anos 1960 com a criação do bairro Restinga, na zona sul, que recebeu contingentes de moradores de vários coletivos de malocas, sendo a Ilhota o mais conhecido (situada entre Azenha, Menino Deus e Cidade Baixa, abrigou personalidades famosas como o compositor Lupicinio Rodrigues e o ponta-direita Tesourinha, do Internacional). Já os habitantes da Docas das Frutas e da Caiu do Céu foram absorvidos pela vila Mato Sampaio, no bairro Bom Jesus.

— A cidade cresceu por ondas e as vilas foram empurradas para áreas cada vez mais distantes, diz Weimer.

O artigo publicado na revista da UFRGS teve como origem a coleta de dados de estudo acadêmico sobre habitação popular de Porto Alegre feito pelo próprio Rodrigo Weimer em parceria com os colegas Álvaro Antônio Klafke e Vinícius Reis Furini, em 2015. Na época, Weimer trabalhava na FEE (Fundação de Economia e Estatística do RS) – com o processo de extinção do órgão, ele foi transferido para o Arquivo Público do RS.

A pesquisa original (que deverá sair em livro pela Editora da UFRGS) analisa principalmente itens de raça e classe social como pretextos para o afastamento das populações pobres. Já o artigo de Weimer destaca os critérios de sexualidade. Em ambos os trabalhos, além do relatório de Meneghetti, foram consultadas fontes de história oral e reportagens de jornais do período.