Com a cara dos anos 80

banda Atahualpa Y Us PAnquis retorna a todo vapor com disco e shows que resgatam a efervescência cultural da época

Formação do Athaualpa Y Us Panquis na década de 1980: em pé, da esq. para dir.: Gordo Miranda, Castor Daudt e Paulo Mello; sentados: Jimi Joe (à esq.) e Flu (Foto/Eurico Salis)

Formação do Athaualpa Y Us Panquis na década de 1980: em pé, da esq. para dir.: Gordo Miranda, Castor Daudt e Paulo Mello; sentados: Jimi Joe (à esq.) e Flu (Foto/Eurico Salis)

Uma das mais emblemáticas bandas dos anos 1980 está de volta. Lançado nas plataformas digitais na sexta, dia 23/8, o disco MiniMundo reúne as canções anárquicas e transgressoras do Atahualpa Y Us Panquis, grupo que costurou de modo peculiar e intransferível influências de pop básico, punk rock, música serialista e atonalismos sob a batuta de Carlos Eduardo Miranda, o Gordo Miranda, músico e produtor responsável pela formatação de boa parte do rock nacional nas últimas três décadas.

O show de lançamento de MiniMundo, álbum do selo YB, de SP, acontece na segunda-feira, dia 26/8, na Segunda Maluca do bar Ocidente, em Porto Alegre. Outras duas apresentações estão agendadas em São Paulo – dia 10/9, no Centro da Terra, em Perdizes, e em 12/9 no Mundo Pensante, no Bixiga, esta última com a Orquestra da Depressão Provinciana, contando ainda com as participações especiais de Gabriel Thomaz, Marcelo Gross e Beto Bruno.  

De grafia “duvidosa, incerta e aleatória”, conforme os atuais integrantes, o nome da banda surgiu a partir de uma piada feita numa mesa de bar pela atriz Nora Prado (filha do escultor Vasco Prado). Ela vinha de um show de Atahualpa Yupanqui (um dos principais representantes da música folclórica argentina) na Reitoria da UFRGS, quando encontrou o publicitário e dramaturgo Toninho Neto:

– Que tal o show?, quis saber Toninho.

– O velhinho é legal, mas o tal do punk não apareceu, brincou Nora.

Em 1983, o músico e jornalista Jimi Joe e Luiz Rettamozo, o Retta (publicitário, poeta e desenhista de HQs, atualmente radicado em Curitiba), haviam montado com o violonista Carlos Branco (hoje produtor cultural em Porto Alegre) o espetáculo Quem Tem QI Vai, que lotou noites sem fim o aconchegante Bar do IAB, na Praça Dom Feliciano.

Quando acabou a temporada, os amigos trocavam ideias sobre o que fazer em outra mesa de bar (“É sempre assim que as bandas nascem!”, comenta Jimi), no quintal do saudoso Marcelina, na Rua Sofia Veloso, na Cidade Baixa.

— E agora?, provocou Jimi.

— Agora é Atahualpa Y Us Panquis, disparou Retta, lembrando-se da piada de Nora Prado, que àquela altura havia se incorporado ao anedotário do círculo underground da cidade.

— Sim! No show intitulado Horrível Metal, emendou Jimi, entrando na gozação.

Só que ambos levaram a sério a brincadeira. Os primeiros ensaios foram realizados no verão de 1984, no apartamento de Retta, na Rua Mata Bacelar, na Auxiliadora. Jimi levou o LP de estreia do Clash (banda inglesa de punk rock) debaixo do braço “para ver se a gente podia roubar alguma coisa”, ao passo que Retta se dizia mais atraído pela veia humorística do João Penca & Seus Miquinhos Amestrados, grupo carioca de rockabilly, doo-wop e surf music.

De algum modo, a roupagem anárquica das músicas do Atahualpa Y Us Panquis é uma combinação dessas duas vertentes, enriquecidas pela contribuição do Gordo Miranda (falecido em 2018) e do baixista Paulo Mello, que em seguida aderiram à banda. Nesse meio tempo, Carlos Branco se afastou alegando que preferia tocar jazz e MPB.

Desde 1982, quando Jimi fizera parte do projeto musical um tanto amalucado O Grito Paira Sobre Nossas Cabeças com uma galera da FAMECOS, na PUC/RS, Miranda vinha demonstrando a intenção de produzir algum trabalho em conjunto.

— A gente curtia os mesmos sons esquisitos, tipo Stockhausen (Karlheinz Stockhausen, compositor alemão de vanguarda), música atonal e, claro, punk rock, anota o músico e jornalista.

Algum tempo depois, a banda passou a ensaiar no pátio da casa do Gordo Miranda, que morava com os pais na Rua Liberdade, no bairro Rio Branco. Os ensaios se realizavam pela manhã, das 10 horas até o meio dia. Volta e meia, a avó do Miranda, que morava ao lado, atravessava o pátio em meio aos acordes estridentes.

— Ela passava para falar com a mãe do Miranda. O avô dele também aparecia de vez em quando. Gente finíssima, comenta Jimi.

Não demorou para que os ensaios na Rua Liberdade atraíssem jovens roqueiros ainda pouco conhecidos, como Edu K, da banda DeFalla, e Gustavo "Xis" Aguirre, da Fluxo.

— Lembro do Edu K, muito guri, com um violão e um caderno de letras nas mãos para mostrar as músicas dele para nós. 

A banda em 2019, com Carlinhos Carneiro (primeiro à esq.) no lugar do Gordo Miranda (Foto/Vicente Guedes)

A banda em 2019, com Carlinhos Carneiro (primeiro à esq.) no lugar do Gordo Miranda (Foto/Vicente Guedes)

O Atahualpa Y Us Panquis estreou nos dias 17 e 18 de março de 1984 no Taj Mahal, lendária danceteria da Porto Alegre dos anos 1980, situada na Avenida Farrapos, com Jimi (guitarra e vocais), Miranda (teclado e vocais), Paulo Mello (baixo) e Fernando Paiva (bateria), este último recrutado da banda de Nei Lisboa.

Retta teve uma participação performática efêmera na banda, que se limitou às duas apresentações no Taj Mahal, mas não passou em brancas nuvens – ele apareceu no palco com uma corda no pescoço, dizendo que era “homenagem” ao cantor e compositor Carlinhos Hartlieb, que havia sido encontrado morto por enforcamento menos de dois meses antes na Praia do Rosa (SC).

Dá para imaginar o escândalo, ainda mais levando em conta que Hartlieb era uma das figuras mais queridas do meio musical do RS.

– Houve uma indignação geral. Ficou na minha memória a noite em que o Flávio Falcetta, amigão do Carlinhos, queria encher o Retta de porrada! E a ironia disso tudo é que, no ano seguinte, eu escrevi a biografia do Carlinhos para a coleção Esses Gaúchos, da editora Tchê, em parceria com o Rossyr Berny (jornalista e escritor), recorda Jimi.

Em seguida, com as saídas de Fernando Paiva e Paulo Mello, Castor Daudt assumiu a bateria e Flávio Flu Santos ocupou o posto de baixista. Além disso, o guitarrista Paulo Nequete (falecido em 2010) era uma espécie de membro honorário do Atahualpa Y Us Punqui, gravando em estúdio, mas raramente comparecendo aos shows.

Apesar da radicalidade da proposta musical, ou talvez por causa dela, o Atahualpa logo ganhou destaque na cena roqueira da capital gaúcha com shows memoráveis em locais como o bar Ocidente e o Teatro de Arena, além de se apresentar para públicos mais abrangentes nos ginásios Tesourinha e Gigantinho.

Ilustração usada em cartaz e camisetas

Ilustração usada em cartaz e camisetas

Bandas e artistas que depois ficariam famosos fizeram a abertura de algumas dessas performances, casos de Júlio Reny e Engenheiros do Hawaii num show na antiga sede da Terreira da Tribo, na Rua José do Patrocínio.

— Era pedido dos músicos se apresentarem antes, porque depois de um show do Atahualpa sobrava muito pouco do palco para a outra banda tocar. Fora isso, faltava público também, porque a nossa barulheira botava muita gente para correr, conta Jimi.

Em 1985, o Atahualpa participou da coletânea Rock Garagem 2, produzida pelo radialista Ricardo Barão para a ACIT, com a faixa Todo Mundo Saca, um punk rock interpretado num estilo visceral pelo Gordo Miranda, ao lado de bandas como Prize, Câmbio Negro, Os Eles e Spartacus.

Em 1993, o selo Baratos Afins, de SP, lançou Agradeça ao Senhor, único disco da banda disponível antes de MiniMundo, aproveitando um registro feito no inverno de 1988 no estúdio EGER, em Porto Alegre. Além disso, circulou na década de 1980 uma fita K7 (Zona Mortal) com o áudio de um show no Ocidente, no qual o Atahualpa faz uma versão inusitada da canção Revolution 9, dos Beatles, com bastante microfonia e outros barulhos estapafúrdios.  

Já o disco que está sendo lançado agora traz canções que jamais haviam sido gravadas antes pelo Athaualpa, como Sandinista, Shoobidabidooba, Tarde Demais, 22 Minutos e Os Analistas. Hoje radicado em Maceió (AL), Castor Daudt revela que, após o lançamento de Agradeço ao Senhor, ficou com a sensação de que ali as músicas mais famosas da banda já deveriam ter sido registradas.

— Só que, na hora de gravar, o Miranda, sempre inquieto, nos convenceu a criar algo novo na base do improviso. Ficou um disco experimental, que nem de longe reflete o trabalho da banda, embora tenha coisas interessantes, é claro.

Em 2017, os roqueiros chegaram a um acordo para elaborar um novo álbum como forma de resgatar as antigas canções, mas a correria do dia-a-dia e a doença de Miranda acabaram adiando o projeto. A ideia foi retomada no ano passado, após a morte de Miranda, num show em tributo ao amigo no Ocidente. Carlinhos Carneiro, que havia participado da homenagem, foi chamado para assumir os vocais e o teclado.

O disco foi gravado em março deste ano no Estúdio IAPI, na zona norte de Porto Alegre. Além das canções do Atahualpa, inclui Pop Básico, música inédita feita por Carlinhos Carneiro para a ocasião. Se, por um lado, MiniMundo constitui o resgate de um repertório representativo de uma época fecunda do rock, também surpreende pelas melodias menos ásperas, com letras inteligentes e afiadas. O clipe da música Estou Fazendo está disponível no YouTube.

— Num momento distópico, num lugar que se tornou surreal, nada como uma boa dose de poesia atemporal e um chute na bunda com boa dose de punk, rock e qualquer loucura que seja, resume Flávio Flu Santos.

Com certeza, o Gordo Miranda ficaria orgulhoso e diria: “É isso aí, velhinho!”.