O triunfo do rock de garagem
Os Replicantes, banda criada sob o lema punk “Faça você mesmo”, comemora 35 anos de estrada
O rock está em festa. A banda Os Replicantes completa 35 anos de atividades – ela surgiu numa garagem da Rua Marquês do Pombal, na fronteira do Moinhos de Vento com a Floresta, sob o ritmo frenético do punk rock, em 1984.
A comemoração aconteceu no sábado, dia 10/8, com show no Gravador Pub, no Quarto Distrito. No repertório, além de clássicos como Nicotina e Festa Punk, os atuais replicantes – Júlia Barth (vocais), os irmãos Claudio (guitarra) e Heron Heinz (baixo) e Cleber Andrade (bateria) – foram apresentadas as faixas de Libertà, o disco mais recente, lançado em maio de 2018, que inclui uma releitura de Síndrome de Pânico, de Júpiter Maçã.
Desde o começo, as letras de contestação e puro deboche abordam temas que vão do consumo supérfluo e o ativismo de boutique à opressão humana por instituições como o estado, a família e a igreja. Tudo isso envolto num clima de ficção científica – não custa lembrar que replicantes eram os androides de Blade Runner, filme de Ridley Scott lançado em 1982.
Em três décadas e meia, foram compostas mais de 100 canções registradas em 13 álbuns e três DVD’s, com reconhecimento de público e crítica – Surfista Calhorda, por exemplo, está no playlist das “100 músicas que você precisa escutar” do livro Curtindo a Música Brasileira – Um Guia Para Entender e Ouvir o Melhor da Nossa Arte, de Alexandre Petillo. Referência do rock nacional, em três excursões à Europa passaram por palcos de França, Suécia, Alemanha, Suíça, Noruega, Finlândia, Bélgica e Holanda.
A data de 16 de maio de 1984 é o marco zero. Naquela noite, a atmosfera anárquica descrita nas canções se espalhou pelo bar Ocidente impulsionada por ovos e cusparadas arremessados pela plateia em direção ao palco.
Há controvérsias até hoje a respeito da autoria das injúrias.
A versão menos polêmica é a de que punks brotados da calçada da Osvaldo Aranha subiram as escadas do Ocidente para exercer seus rituais de esculacho a fim de dar as boas-vindas à banda estreante.
Outra possibilidade é a de que a chuva de ovos tenha sido represália às letras que falavam mal de ícones da MPB, como Caetano Veloso e Chico Buarque. Neste caso, a repulsa teria partido de admiradores dos artistas avacalhados, que estavam dispostos a criar um clima escrachado para que os Replicantes provassem do próprio veneno. O cineasta Carlos Gerbase, um dos fundadores da banda, se inclina para a segunda versão:
— Não lembro de punks vestidos a caráter, com cabelo moicano ou coisa que o valha, naquela noite no Ocidente. Nós mesmos não seguíamos a moda punk. Recordo de ter feito shows de camiseta branca e calção da Adidas.
Outro incidente colaborou para inscrever a estreia dos Replicantes no alfarrábio de lendas do rock gaúcho.
A certa altura, Wander puxou um soquete de iluminação, que estava dependurado no teto, aproximando-o da boca como se fosse um microfone. Ao ver a cena, o dono do Ocidente, Fiapo Barth, entrou em pânico – ele sabia que uma das mesas de luz do bar estava em curto-circuito e não tinha certeza se aquele soquete achava-se conectado a ela ou não.
— Não cheguei a encostar a boca ou a língua, como alguns falam, mas a verdade é que não me dei conta de que o soquete podia estar ligado. Por sorte, não estava, conta Wander.
A histórica noite no Ocidente entrou para a posteridade como estreia oficial – afinal, foi a primeira vez que divulgaram o trabalho e cobraram ingressos. Mas, antes disso, os Replicantes já haviam se apresentado para plateias de amigos em pelo menos duas ocasiões: no pátio da casa do baixista Daniel Correa Lorenzoni (da banda Cobaias), em Teresópolis, e na residência dos pais de Gerbase em Canela, durante o Festival de Cinema de Gramado.
— A primeira aparição pública dos Replicantes foi mesmo na minha casa, na Clemenciano Barnasque, uma rua pacata, que naquela noite virou uma loucura. Os vizinhos até chamaram a Brigada Militar por causa do barulho, relata Daniel, hoje radicado em Foz do Iguaçu (PR), onde dá aulas de História.
Essas performances domésticas, a rigor, eram extensões dos ensaios improvisados na garagem da casa da Rua Marquês do Pombal, onde Heron morava com Gerbase e Luciana Tomasi, casal que mais tarde participaria da fundação da Casa de Cinema e, atualmente, está à frente da Prana Filmes.
Na época, Heron e Gerbase estavam entusiasmados com o punk rock, que havia chegado tardiamente ao Brasil, no início dos anos 1980, a bordo das peças musicais explosivas de Sex Pistols e The Clash, bandas constituídas em meados da década anterior na Inglaterra. Animados, os amigos decidiram seguir o lema punk “Faça você mesmo”, que permitia a qualquer pessoa tocar um instrumento e cantar, ainda que não tivesse conhecimento musical, o que era precisamente o caso deles. Faltava só definir os demais componentes do grupo.
— Quem sabe a gente chama o Cláudio? Lembro que ele tocava flauta doce no colégio, sugeriu Heron.
De fato, Claudio tinha aprendido a tocar flauta nas aulas de Música, ainda no Ensino Fundamental, no Instituto de Educação Flores da Cunha. Além disso, já adolescente, fizera um curso de não mais do que duas horas de violão oferecido pela rede de lojas Imcosul. Ainda assim, em comparação com os demais, não havia dúvida de que era o mais capacitado da turma nas lides musicais.
O passo seguinte consistia em adquirir os instrumentos. Gerbase comprou a bateria do amigo Plínio Assis Brasil, que andava atirada num canto, sem serventia, ainda que tivesse no currículo a honrosa participação numa cena do filme Deu Pra Ti, Anos 70, primeiro longa-metragem em super 8 do RS, que Giba Assis Brasil (irmão de Plínio) havia dirigido três anos antes com Nelson Nadotti.
Já os irmãos Heinz subiram a Rua Coronel Vicente, no Centro, até a loja Mil Sons para a aquisição dos instrumentos. Reza a lenda que Heron fez a escolha levando em conta a quantidade de cordas:
— Prefiro essa “guitarra” de quatro cordas, disse ele, apontando para o contrabaixo. A seguir, completou: — Deve ser mais fácil de tocar.
Saíram da Mil Sons com uma guitarra e um baixo da marca Rey, além de um microfone e um amplificador Giannini.
Conforme Gerbase, a originalidade dos Replicantes se deveu à incapacidade de reproduzir os arranjos do repertório de bandas consagradas. Mesmo o estilo áspero e visceral do punk rock se mostrava sofisticado demais para o grau de capacitação técnica dos jovens.
— Não fazíamos covers porque não conseguíamos copiar ninguém. As músicas tinham que ser, então, da nossa própria lavra.
Claudio relembra que não sabia tocar nenhum acorde inteiro, por isso, a princípio se limitava a usar uma só corda da guitarra nos ensaios. Aí comprou uma revistinha de música com as cifras musicais para aprender e treinar.
— Quando aprendia uma sequência de dois acordes, tinha já uma música pronta, conta ele.
Para que os Replicantes pudessem compor e tocar as canções de dois acordes, foi preciso despejar o Chevette de Gerbase da garagem. Dali por diante, o carrinho passaria as noites ao relento. Afinal, dava muito trabalho remontar os equipamentos a cada ensaio.
Como Gerbase achou complicada a tarefa de tocar bateria e cantar ao mesmo tempo, Wander Wildner foi convidado a ser o crooner. Além de colega de quartel de Gerbase no serviço militar, ele havia participado como ator de Deu Pra Ti, Anos 70 e de peças do grupo teatral Vende-se Sonhos.
Só que Wander se mudara para o Rio de Janeiro, onde ganhava a vida como iluminador de espetáculos. Aliás, ele recebeu o convite para se integrar aos Replicantes através de um telefonema quando estava em Salvador, durante uma turnê de Alceu Valença.
Ao final da excursão, retornou a Porto Alegre e, com uma guitarra Veronese que havia conseguido emprestada a tiracolo, bateu à porta da casa da Marquês do Pombal.
— Até deixaram eu ligar a guitarra, mas, como eu não sabia tocar absolutamente nada e eles só sabiam executar as músicas que tinham feito, deu tudo errado.
Apesar do desapontamento, por via das dúvidas, Cláudio e Heron entregaram a Wander uma fita cassete com meia dúzia de canções na voz de Gerbase, enquanto curtiam férias em fevereiro numa praia de Santa Catarina. Nesse meio tempo, Wander decorou as letras cantando exaustivamente o que ouvia no gravador, como se fosse uma sessão de karaokê.
Em março, reapareceu na Marquês de Pombal, dizendo-se pronto para ocupar o posto de vocalista.
— Nunca comentei com eles isso, mas tenho certeza de que devem ter pensado: “Putz, o Wander ainda não desistiu...”.
Para surpresa geral, Wander não só sabia as letras de cor, como tinha incorporado um personagem punk para cantá-las. Ele conta que, para isso, usou a experiência adquirida em teatro:
— Encarei como se fosse o texto de uma peça que eu deveria interpretar.
Depois do show no Ocidente, tudo ganhou um ritmo acelerado para os Replicantes. Ainda em maio de 1984, tocaram no festival Tcha Tcha Bum, na danceteria B’52, com produção de Carlos Eduardo Miranda, o Gordo Miranda. Neste show, Cachaça, um punk que circulava no Bom Fim, se postou em frente ao palco para acertar em cheio uma cusparada no rosto de Wander.
Num gesto impulsivo, o cantor chegou a erguer o pedestal para acertar o Cachaça, mas recuou a tempo:
— Veio na minha cabeça a imagem de sangue na testa dele e eu pensei: “Não posso fazer isso”.
Em junho, o áudio de Nicotina, registrado num estúdio de jingles de quatro canais, foi entregue à Ipanema FM. A pedido dos ouvintes, não parava de tocar na rádio. Em seguida, outras canções entraram na programação da emissora, ao mesmo tempo em que a banda iniciava a produção de videoclipes, como o de O Princípio do Nada, gravado na TVE e exibido no programa Pra Começo de Conversa.
Clique nas fotos abaixo para ver imagens da gravação dos videoclipes de Surfista Calhorda e Nicotina, músicas lançadas em compacto duplo com produção independente, que vendeu duas mil cópias, em 1985. A última fotografia da sequência (de Rochelle Costi) fez parte da divulgação do LP Histórias de Sexo & Violência, de 1987.
Ainda em 1984, os Replicantes participaram do long-play Rock Garagem, com outras nove bandas gaúchas, incluindo Taranatiriça e Garotos da Rua, produzido pelo radialista Ricardo Barão.
Em setembro do ano seguinte, o festival Rock Unificado bateu o recorde de público para a cena roqueira local, com mais de 10 mil pessoas acotoveladas no Gigantinho. Entre elas, estava o produtor Tadeu Valério, da gravadora RCA Victor, que contratou Engenheiros do Hawaii, Garotos da Rua, DeFalla e TNT, além dos Replicantes, para o lançamento da coletânea Rock Grande do Sul.
De contrato assinado com a RCA, os Replicantes lançaram, em 1986, o primeiro LP, O Futuro é Vortex. Em dois anos, a banda criada na garagem da Marquês do Pombal era já protagonista do rock nacional. De lá para cá, preservaram a identidade e a virulência do punk rock, em períodos de altos e baixos, cruzando as intempéries que assolam o País.
— Quando começamos, estávamos saindo de uma ditadura e as perspectivas eram boas. Hoje, ao contrário, talvez estejamos entrando num período ditatorial, diz Heron.
No palco, a mudança mais visível é a presença feminina com Júlia Barth nos vocais. Não que seja algo absolutamente inédito – nos primeiros anos, Luciana Tomasi atuava como produtora e, a partir de 1989, passou a tocar teclados, além de fazer backing vocal, ao mesmo tempo em que Gerbase ocupava o lugar de Wander (que iniciava carreira solo), deixando as baquetas dos Replicantes nas mãos de Cleber Andrade.
Essa formação se manteve até 2002, ano em que o casal Gerbase e Luciana deixou a banda e Wander deu início à segunda passagem pelos Replicantes. Júlia Barth é a vocalista há 13 anos – mais um pouco, vai ultrapassar as marcas de Gerbase, que ocupou o posto durante 14, e Wander, por sete anos intercalados.
Com a adesão de Júlia, 20 anos mais jovem que os demais replicantes, a sintonia com as novas gerações se intensificou. Além disso, ela trouxe mais garotas para os shows.
— Acho que se sentem representadas pela visão de uma mulher no palco, assinala Heron.
Essa identificação tem a ver ainda com a postura política de Júlia, estampada em slogans e mensagens feministas nas camisetas que usa.
— Quero que as mulheres saiam das sombras, justifica ela. Em seguida, pondera: — Os rapazes não gostam de levantar bandeiras. Acham que a opinião política já está exposta nas letras das canções, e isso basta. Já eu forço um pouco para mostrar posição como feminista, mulher e mãe.
A exemplo de Wander lá no começo da trajetória dos Replicantes, Júlia também se vale da vivência em teatro e cinema para multiplicar a adrenalina das canções. Por sinal, antes de ingressar oficialmente no grupo, ela interpretou o papel de uma cantora no filme O Cerro de Jarau, de Beto Souza. Numa das cenas, cantava Hippie, Punk, Rajneesh, acompanhada pelos Replicantes. A química funcionou, tanto que, em seguida, ela foi convidada a se integrar à banda.
— Como atriz, a cantora que sobe ao palco é o meu melhor personagem, brinca Júlia.
A comemoração dos 35 anos dos Replicantes no Gravador Pub foi gravada para o lançamento de um disco ao vivo um pouco mais adiante. Com isso, alguns hits das décadas de 1980 e 1990 foram registrados pela primeira vez pela voz de Júlia – até aqui, canções como O Futuro é Vortex, One Player e Pin Up haviam sido cantadas por ela exclusivamente nos shows.
— O repertório da apresentação inclui também músicas que nunca cantei e não lembro de ter escutado ao vivo em outros tempos da banda, como Inverno Sombrio, do disco Papel de Mau, de 1989, que tem tudo a ver com o momento atual, conclui Júlia.
Vida longa aos Replicantes, antídoto de energia e resistência para estações sombrias.