Gente da noite
Garçom do Marinho, um dos mais tradicionais bares da Cidade, Ruy valério é corretor de imóveis durante o dia
Já aconteceu de estar servindo uma cerveja para um cliente e sentir o celular vibrando no bolso da calça, sinal de que acabou de chegar uma proposta de negócio para a compra ou a venda de algum imóvel pelo WhatsApp.
Há quase quatro anos trabalhando como garçom do Bar do Marinho, Ruy Valério Costa Marinho já foi um boêmio inveterado, desses que atravessa o parque ao raiar do sol para tomar a saideira no bairro vizinho. Hoje é um dos mais respeitados garçons da cidade e intercala o expediente noturno com a atividade de corretor de imóveis durante o dia.
As calçadas da Cidade Baixa ele conhece com intimidade. Porto-alegrense criado no bairro boêmio da capital gaúcha, Ruy foi um garoto que passava as tardes jogando futebol com os amigos.
— A Igreja Sagrada Família tinha um campo de areão. Depois, o padre Severino construiu um ginásio no local, recorda.
Também batia bola ali pelos lados do Areal da Baronesa e da Ilhota, núcleos da população negra e pobre da região central da cidade.
— Naquele tempo não existia tanto disparate de preconceito. As crianças da Ilhota eram minhas colegas de aula.
Na juventude, fechava os bares da Cidade Baixa e atravessava a Redenção para amanhecer no Lola ou no Bar João, na Avenida Osvaldo Aranha.
— Muitas vezes fazia isso, e não só eu. Até a década de 1980, tinha uma comunicação entre os bares dos dois lados do parque. Hoje, nem pensar. A violência tirou o encanto da boemia, suspira.
Em 1983, o boêmio se transformou em dono do Tafona Bar, na esquina das Ruas Olavo Bilac e Santana. O nome era homenagem a uma canção de Luiz Carlos Borges, um dos principais representantes da música regional do RS – Romance na Tafona. No palco do boteco, passaram músicos de primeira linha, ainda em começo de carreira, como o baixista Gastão Villeroy, hoje radicado no Rio de Janeiro, acompanhando artistas como Adriana Calcanhotto, Caetano Veloso, João Bosco e Milton Nascimento.
Dois anos depois, Ruy arranjou uma namorada em Alegrete e ficou um tempo por lá, como sócio do Bolicho do Caramanchão. A temporada na fronteira durou até 1989, quando retornou a Porto Alegre para ser gerente da Companhia do Sanduíche, no Menino Deus. Ali se reunia outra galera ligada à música, que contava com o produtor Ayrton dos Anjos e os instrumentistas Renato Borghetti e Geraldo Flach, além dos radialistas Paulo Deniz e Glênio Reis.
No começo dos anos 2000, um dos donos da Companhia do Sanduíche, Rogério Messina, convidou Ruy para acompanhá-lo num novo projeto – o Fellini Bar, na Doutor Timóteo, no bairro Moinhos de Vento. Mais uma vez, ele estava cercado de músicos de qualidade. Muita gente boa tocou no Fellini, como o baterista Amauri Copetti, os baixistas Tênison Ramos e Salvador Touguinha (o Tiquinho), e o pianista Adão Pinheiro, relata Ruy, orgulhoso. Em 2002, até foi lançado o CD Fellini PIano Bar, com a participação dos artistas habitués da casa.
Em 2010, Ruy entrou no mercado imobiliário, vendendo apartamentos com preços que variam de R$ 400 mil a R$ 2 milhões.
O trabalho de corretor de imóveis se estende do meio dia até as seis horas da tarde, em casa ou com plantões em imobiliárias. A cata aos clientes se prolonga algumas vezes a locais movimentados, como a porta de supermercados, onde Ruy apresenta portfólios de prédios aos transeuntes. No começo da noite, ele veste o avental e assume a posição de único atendente fixo do Bar do Marinho.
Apesar do sobrenome aparentemente repetido, Ruy Valério Costa Marinho não é parente do proprietário do bar em que atualmente trabalha. Até porque, no caso do dono da bodega, Marinho não é sobrenome, e sim apelido – não espalha, mas o o registro na carteira de identidade dessa verdadeira lenda da noite porto-alegrense é Celmar Rodrigues.
A amizade com o atual chefe vem da época em que era cliente do Gota D’Água, primeira incursão do Marinho na cena noturna da cidade, no início da década de 1980. No Gota D’Água, outro ponto de encontro de músicos – a maioria nativistas, como Élton Saldanha e Neto Fagundes –, surgiu o hábito de circular o violão entre as mesas do bar, que acompanha os botecos do Marinho pela vida afora.
No atendimento aos notívagos, Ruy tem uma reserva quase inesgotável de paciência, de modo que nada é capaz de tirá-lo do sério. Para ele, o segredo de um bom profissional da noite é, antes de tudo, gostar da boemia. Não precisa dizer que esse requisito ele cumpre com sobras.
— Conhecer o outro lado da noite, como boêmio, ajuda bastante. É mais fácil saber o que o cliente quer. Além disso, como a pessoa vive num universo parecido com o teu, tem conversa para um monte de horas.
Por essas e outras, Ruy não tem pressa de ir para casa, mesmo sabendo que, no dia seguinte, terá uma dupla jornada de trabalho. Se alguém perguntar por que não larga o batente de garçom, ele vai responder que não é por causa de dinheiro, e sim por uma irresistível atração pelo que a vida noturna tem de melhor.
— Na noite, todo mundo é igual, ninguém é melhor do que ninguém, justifica ele.