O traço do anarquista
O cartunista Santiago defendeu a liberdade de expressão contra qualquer obscurantismo ao participar do lançamento do livro “Rua da Margem – Histórias de Porto Alegre”
— Às vezes, bate um medo quando começo a desenhar. Fico pensando em milícias e outras forças do submundo que podem agir por aí. Eu não imaginava que pudéssemos regredir tanto.
A declaração foi feita pelo cartunista Neltair Rebés Abreu, o Santiago, ao participar do lançamento do livro Rua da Margem – Histórias de Porto Alegre, no bar Parangolé, no sábado dia 14/dezembro. Personagem de um dos capítulos da obra, Santiago foi entrevistado pelo autor, o jornalista Paulo César Teixeira, editor do Rua da Margem.
Com 18 livros publicados e dezenas de prêmios acumulados ao longo da carreira, o desenhista colabora atualmente com os jornais Extra Classe, do Sinpro/RS (Sindicato dos Professores da Rede Privada) e João de Barro, da APCEF (Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal), além da revista do CREA/RS (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia). Os cartuns de Santiago estão presentes também no Brasil de Fato RS, publicação que acaba de lançar edição especial de humor.
Em meio à onda conservadora, Santiago comentou que já pensou em parar de fazer humor político, não tanto por temor diante da censura, mas em função da repetição de temas:
— Tenho vontade de criar algo mais para o lado do lirismo das artes plásticas, mas ao mesmo tempo me sinto convocado a continuar falando de política, porque essas coisas – injustiça social, poluição, guerras etc. – estão ainda aí, não foram resolvidas.
Ele se mostrou cético em relação ao futuro do País em curto e médio prazos, citando o líder pacifista Mahatma Gandhi, que na década de 1920 já alertava que as sociedades desiguais tendem a caminhar para regimes totalitários.
— O homem comum da rua acha que é necessário um estado forte, ditatorial. Se a polícia matou 30 pessoas numa favela, e só três eram bandidos, tudo bem para ele, porque ao menos alguns bandidos foram mortos. Até o dia em que um filho dele esteja entre as vítimas... Não se pensa em soluções de longo prazo, como melhorar a educação e a distribuição de renda, só que mais cedo ou mais tarde teremos que começar a andar nessa direção.
Ao defender um conceito de humor “anarquista”, Santiago acredita que o cartunista precisa de liberdade para duvidar e debochar de tudo e todos, sem amarras.
Não à toa, tem como ídolos os humoristas do Charlie Hebdo, jornal francês alvo de ataque terrorista em 2015 por conta de piadas interpretadas como insultos à religião muçulmana. No massacre, foram mortas 12 pessoas, entre elas, os cartunistas Charb, Wolinski, Jean Cabu e Tignous.
— Na realidade, os cartunistas do Charlie Hebdo não poupavam nenhuma religião, fosse cristã, judaica ou muçulmana. Só lamento a falta de cuidado que tiveram com as próprias vidas para que pudessem, inclusive, continuar o trabalho deles.
Em paralelo, Santiago critica a parcela da esquerda que justificou o massacre dos humoristas em Paris pela oposição feita pelos grupos muçulmanos radicais aos Estados Unidos.
— Coisa engraçada isso, não consigo entender. É como se a pessoa condenasse o obscurantismo daqui, mas se visse obrigada a defender o obscurantismo de lá. Imagina defender uma sociedade teocrática, onde a mulher é tratada como cachorro e o presidente tem que se aconselhar com o aiatolá.
Mas o “anarquismo” de Santiago é antes de tudo a postura que adota diante da prancha de desenho ou da tela do computador, e não uma ideologia política seguida como cartilha na vida cotidiana.
— No desenho, é válida a postura anarquista de duvidar de tudo, mas no ativismo da vida isso leva a uma desesperança e eu quero ter esperança de que alguma coisa boa possa ser construída.
Herói de guerra
Na conversa com os leitores, no Parangolé, Santiago falou também sobre a origem do nome de batismo, pouco comum – Neltair –, que a rigor ele desconhece.
— O pai morreu sem dar explicação, conta o cartunista, brincando que, na família, só ele não tem “nome de gente”, já que os irmãos ganharam nomes comuns como Odilon, Luís Augusto, Edson e Roberto.
Há algum tempo, ele achou uma pista sobre a possível motivação do pai numa edição do jornal A Razão, de Santa Maria, da década de 1940. Nela, havia a notícia de um homem que estava tentando falar com dona Darci, esposa do presidente Getúlio Vargas, para obter auxílio na compra de uma passagem até Los Angeles, viagem que gostaria de fazer com o objetivo de tentar uma carreira de ator de cinema.
O sujeito – também chamado Neltair – tinha enviado fotos e currículo para algum estúdio de Hollywood e recebera como resposta o convite para realizar um teste em solo americano.
— Até hoje não sei se conseguiu a passagem. Mais tarde, com o advento da internet, me deu curiosidade de saber o que tinha acontecido com ele. Soube, então, que havia sido piloto da FAB, tendo lutado na 2ª Guerra Mundial e, inclusive, voltado ao Brasil como herói. Talvez o pai tenha se emocionado com a história e resolvido homenagear o cara, que depois ainda virou psicanalista em Porto Alegre.
Santiago revelou que desenha desde a mais remota infância em Santiago do Boqueirão, onde nasceu e se criou – o relato da mãe é que começou a rabiscar com três anos de idade. Ali pelos sete anos de vida, já criava histórias em quadrinhos com heróis “fortões” sob a inspiração de filmes e gibis de faroeste.
— O mocinho dava paulada no bandido e ainda dizia a maior ofensa que pode ser dita a um cidadão na região da fronteira: “Vou te deixar todo lasqueado”. Lasqueada significa puteada em santiaguês. Não tem coisa mais humilhante que isso.
Curiosamente, o desenhista só viria a publicar HQs aos 60 anos, já aposentado. Além do tempo mais prolongado necessário para criar um álbum de quadrinhos, pesou também a preferência dos jornais pela publicação de charges e cartuns na década de 1970, época em que iniciou a carreira de desenhista em Porto Alegre.
Ao invés de aventuras fantasiosas de criança, os dois álbuns de HQ de Santiago (Causos do Santiago, de 2013, e A Menina do Circo Tibúrcio, de 2017) contam vivências de sua infância e juventude no interior do RS.
— São histórias simples, que a distância do tempo deixou até românticas. Coisas como tomar banho de açude pelado junto com os amigos quando era criança. Ninguém usava calção e nem por isso um guri queria comer o outro. Não se tinha problema com a nudez, isso é uma bobagem inventada pela religião.
O humorista surpreendeu a plateia do Parangolé ao cantar à capela um trecho de Coração Materno, canção eternizada na voz de Vicente Celestino. A música fez sucesso nos anos 1930 com a narrativa de um matricídio praticado por um camponês a mando da namorada.
– Sou chegado num vozeirão, gosto também de Tony Bennett e Frank Sinatra, admitiu Santiago, apesar de se definir como um amante da música popular brasileira desde a adolescência.
Em 2020, o Rua da Margem vai convidar outros personagens de Porto Alegre para contarem suas histórias ao vivo e a cores em locais como o Parangolé, dando continuidade ao projeto de trazer para o público um pouco da memória viva da cidade.