O anfitrião de Porto Alegre
Depois de criar o Agulha, o Linha e o Vasco da Gama, 1020, Eduardo Titton se prepara para lançar o quarto projeto na noite da capital – uma vermuteria no 4º Distrito
— Desde que me conheço por gente, gosto de confusões noturnas em geral — diz, para começo de conversa, Eduardo Titton, de 33 anos, criador de três bares que estão em qualquer lista dos mais inovadores de Porto Alegre – Agulha, Linha e Vasco da Gama, 1020.
Não à toa, ao deixar a casa da mãe para morar sozinho, aos 22 anos, Eduardo tinha escolhido a dedo um imóvel com design apropriado para eventos boêmios. E, ao tomar posse do sobrado da Rua Vasco da Gama, no bairro Rio Branco, em Porto Alegre, a primeira aquisição não foi fogão ou geladeira, mas um equipamento de som para shows ao vivo, audições de discos, churrascos, jantas temáticas. festas e “outras confusões noturnas”, que ocuparam o casarão ao longo dos quatro anos seguintes.
Uma amiga precisava de um lugar para evento de gastronomia? “Faz lá em casa”. Outro camarada pensou em levar a festa de fim de ano de sua agência de publicidade para a Vasco Alves? “Claro, pode vir”. E assim por diante. Eram dois a quatro eventos por semana. Quando se deu conta, Eduardo tinha arrastado as tralhas pessoais e parte do mobiliário até os fundos da habitação para ceder espaço aos visitantes.
— Cheguei a demolir um sofá de concreto da sala — recorda ele, incrédulo.
Só que, a essa altura, era tarde demais para arrependimentos. Eduardo se via “agarrado ao gosto” de receber pessoas, e atendê-las da melhor forma possível.
— Olhando para trás, percebo que, já naquela época, eu tinha como propósito de vida ser um anfitrião.
Síndrome de Burnout
Ainda que, de um jeito sorrateiro e inconsciente, naquele momento o empresário do entretenimento noturno já estava pronto para vir à tona. Faltava a guinada na vida profissional.
Formado em advocacia, Eduardo era sócio do escritório comandado pelo pai, o advogado trabalhista Régis Eleno Fontana, no qual havia ingressado como estagiário, alguns anos antes. De uma hora para outra, deu vontade de largar tudo.
Com ironia e exagero, ele atribui o rompante a uma Síndrome de Burnout (distúrbio emocional devido a situações de estresse no trabalho). Não era para tanto. Ainda sem saber direito o que fazer, percebeu que, qualquer que fosse o futuro profissional, precisava aprimorar o inglês, o que motivou a compra de uma passagem só de ida para Nova York – assim, além de aprender o idioma, iria conhecer a Big Apple.
O plano era pedir demissão, mas, ao comunicar a decisão aos demais sócios, foi surpreendido com a oferta de três meses sabáticos remunerados. Na visão deles, o rapaz poderia arejar a cabeça e voltar “curado daquela canseira”, brinca Eduardo. Outra surpresa boa veio quando anunciou a novidade à namorada, Juliana Macedo (com quem hoje está casado):
— Tu vai me matar, mas estou indo para Nova York. Vou ficar três ou quatro meses por lá.
— Tudo bem, eu vou junto — respondeu ela.
Ele consentiu de imediato, com a condição de que, durante a estadia nos Estados Unidos, a moça – já bastante sabida e fluente no inglês – não dissesse uma só palavra em português.
A ideia de Eduardo era fazer uma imersão na língua estrangeira, como havia realizado antes, com sucesso, durante viagens a Roma e Barcelona. Diga-se de passagem, Juliana cumpriu rigorosamente a promessa, ainda que, de vez em quando, o namorado suplicasse a ela uma conversa em português para “descansar o cérebro”.
Além de aprender inglês, em Nova York ele também fez cursos de gastronomia, coquetelaria, administração de bares e até fabricação de luminosos de neon para se transformar naquilo que sempre quis ser – um anfitrião de mão cheia nas noites de Porto Alegre.
De fato, de volta à capital gaúcha, largou em definitivo a carreira de advogado para abrir, em dezembro de 2015, um bar na casa em que morava, na Vasco da Gama, mesmo que, a princípio, tivesse dúvidas quanto à adequação do ponto numa zona residencial e ainda sem fluxo noturno. No negócio, ele tem como sócios o irmão Fernando e a bartender Bruna Abeijon.
Para estabelecer o conceito do projeto, entrevistou mais de 200 pessoas, em grupo ou individualmente, até chegar à conclusão de que melhor mesmo era não ter conceito algum. Desse modo, com drinques, cerveja artesanal e gastronomia, o bar estava destinado a ser, antes de tudo, um ambiente de convivência entre amigos.
Essa leveza para definir o perfil se estendeu ao nome do botequim. Ao escolher uma marca neutra e óbvia – Vasco da Gama, 1020, que nada mais é do que o endereço da casa –, a intenção foi mostrar, com a máxima clareza, que se tratava da requalificação de um espaço que já existia. O que, provavelmente, iria acontecer – e aconteceu – era o empreendimento ficar conhecido com as denominações usadas informalmente para designar a moradia de Eduardo, como Loft da Vasco, Vasco 1020 ou simplesmente Vasco.
Até porque, cá entre nós, o bar continua sendo a casa de Eduardo, como é também o Agulha. Mas o Agulha é um caso à parte.
silos na Rua sem saída
Fiel às origens, o bar da Vasco continuou sendo palco de eventos musicais, como shows e gravações de clipes. Não por acaso, a galera da música estava sempre por lá. Na intimidade do balcão do bar, ela reclamava da falta de espaço para a música autoral e independente em Porto Alegre. Conversa vai, conversa vem, surgiu a ideia de montar outro bar para solucionar o impasse.
— No início, era uma proposta bem amadora de um galpão com um tapete, duas caixas de som e um isopor para vender a cerveja mais barata que tivesse – conta Eduardo.
A ideia de ocupar o 4º Distrito foi sugerida pela arquiteta e urbanista Cláudia Titton, prima de Eduardo, que havia feito uma dissertação sobre aquela área para o mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Mackenzie, de São Paulo, em 2012.
— Faziam sentido o entusiasmo e os argumentos da Cláudia em favor da história e da posição geográfica do território.
Na época, já estavam em atividade na antiga área industrial de Porto Alegre o espaço cultural Vila Flores e o Floresta Studio+Oficina, além do Gravador Pub. Após esquadrinhar o bairro atrás de um local, Eduardo preparava-se para assinar o contrato de aluguel de um imóvel na Rua Álvaro Chaves, quando recebeu a sugestão de um cliente. Adivinha onde? No balcão do bar da Vasco.
— Não fecha sem olhar um galpão que vou te recomendar na Rua Conselheiro Camargo — disse o cliente, soprando uma pulguinha atrás da orelha do dono do bar.
Valeu a pena seguir a sugestão. Eduardo se encantou desde a primeira vez que botou os olhos no galpão cercado de imponentes silos, postado no fundo de uma rua sem saída.
Aberto em agosto de 2017, em sociedade com o mano Fernando, o Agulha é, atualmente, o principal palco das vertentes contemporâneas da música popular em Porto Alegre. A programação da sala de concertos enfeitada com cavalinhos no teto (sobras de um carrossel de subúrbio) inclui desde o afrofolk futurista da Tuyo e a fusão de gêneros latinos da Francisco el Hombre até outsiders da MPB, como Jards Macalé e Maurício Pereira, sem falar em Dingo Bells, Teto Preto, Don L, Carne Doce, Josyara e Anelis Assumpção.
Afora isso, o Agulha cumpre com rigor a proposta de furar bolhas não só de estilos musicais, mas também de núcleos de convivência que separam os diferentes públicos do circuito de boemia da cidade. É um bar que escapa da ideia de gueto como o diabo da cruz.
— Fomos entendendo o potencial do Agulha no decorrer da caminhada. Na virada do primeiro ano, caiu a ficha de que tinha dado certo e era muito mais atraente do que inicialmente pensávamos que ia ser — constata Eduardo.
O Agulha foi selecionado pelo edital Natura Musical de 2020 para produzir 18 audições ao vivo de bandas independentes, que serão registradas pela web, além de entrevistas em podcasts, mas a liberação dos recursos por meio da Lei de Incentivo à Cultura (LIC/RS) ainda depende de aprovação do Conselho Estadual de Cultura.
Diana, Vereda ou Andorinha
Assim como o Agulha foi um prolongamento do bar da Vasco, o Linha – terceiro projeto de Eduardo – é uma extensão do Agulha,
A bem da verdade, era para a casa de shows da Conselheiro Camargo abrigar todas as formas de arte, mas, na prática, a agenda afunilou em torno dos shows musicais. Ficou um pinguinho de frustração.
Essa frustração veio à tona em potência dobrada na noite em que, desapontados com o futuro do País, os irmãos Titton resolveram tomar um porre para desafogar as mágoas.
— Não adiantou a gente tentar criar uma agenda cultural de qualidade. Ninguém entendeu — reclamou Eduardo.
— E se a gente desenhar, será que a galera vai entender? — perguntou Fernando, com ironia.
De brincadeira, levaram adiante o raciocínio de “desenhar” a realidade até a zombaria gerar a ideia de inventar um espaço dedicado preferencialmente às artes visuais, mas também a outras áreas de criação não atendidas pelo Agulha.
Desse modo, em fevereiro de 2019, surgiu o Linha, um centro cultural alojado no prédio de três andares e térreo de uma escola desativada da Avenida São Pedro, outro ponto bastante incomum para um empreendimento que fica de portas abertas em horário noturno. Como sócios, Eduardo tem Fernando e Bruna, repetindo o trio que também dirige o bar da Vasco.
Além de bar e área para sessões de cinema, performances de dança, oficinas e workshops, o Linha conta com ateliês individuais e compartilhados de artistas visuais, A ideia é que produzam peças para exposições no próprio centro cultural, com curadoria de Luísa Kiefer. O Programa de Residência está com inscrições abertas até 2 de fevereiro.
Com poucos recursos para investimentos, o Linha foi montado com boas doses de improviso. O balcão refrigerado do bar, por exemplo, veio de um mercadinho de Canoas, garimpado no site de compras OLX. Já as mesas de refeitório foram cedidas por um vizinho do Agulha. Em face das dificuldades de sustentação do negócio – ao contrário da música, as artes visuais não produzem retorno a curto prazo –, em breve será lançado o Clube de Amigos do Linha, que receberá contribuições para a manutenção do espaço.
Quem pensa que, com o bar da Vasco, o Agulha e o Linha, Eduardo já se deu por satisfeito não perde por esperar. Não é que o rapaz está prestes a lançar um quarto projeto na noite de Porto Alegre?
Em parceria com o chef Mauri Olmi, Eduardo, Fernando e Bruna se preparam para abrir uma vermuteria a uma quadra do Linha, no cruzamento da Rua Moura Azevedo com a Avenida Presidente Roosevelt, em prédio construído em 1917, que fica em frente à antiga sede do Clube Sociedade Gondoleiros.
A nova casa deverá abrir as portas em maio. Por enquanto, não tem nome escolhido. Uma possibilidade é Diana, planta medicinal presente na composição do vermute. Outra é Vereda, como indicação de atalho, já que ela estará a meio caminho entre o Agulha e o Linha. Uma terceira opção é Andorinha, alusão às migrações do 4º Distrito, que, no passado, recebeu de braços abertos imigrantes escandinavos, alemães e italianos, e hoje acolhe haitianos e senegaleses.
Eduardo jura de pés juntos que a vermuteria é o último negócio a ser posto em prática.
Ah, espera aí, ele lembrou agora de mais uma ideia que está na gaveta – o projeto de uma livraria. Não conta para ninguém, mas já andou até batendo pernas pelo Bom Fim à procura de um imóvel, tudo por conta da vontade de criar espaços de boa convivência e cultura de qualidade. Porto Alegre agradece.