Delicadas e subversivas

Reconfiguradas, as peças feitas à mão por avós e bisavós ganham espaço no mercado como expressão de arte e engajamento feminista

Bordado Empoderado: em três anos, mais de 1.200 mulheres aprenderam técnicas antigas para criar peças com frases e símbolos de emancipação feminina

Bordado Empoderado: em três anos, mais de 1.200 mulheres aprenderam técnicas antigas para criar peças com frases e símbolos de emancipação feminina

Quem entra numa das lojas da Profana, um dos mais conceituados pontos de moda feminina de Porto Alegre, percebe algo além de saias, vestidos, blusas, casacos e calçados por entre vitrines e araras.

No ambiente aconchegante permeado de cores vivas e recortes originais, estão expostos também acessórios feitos à mão, seguindo uma tendência que se afirma a cada dia como opção de parcela significativa de mulheres. Não estão lá por acaso.

– Essas peças têm uma energia especial, assim como as roupas que produzimos e vendemos em nossas lojas. O cuidado e a delicadeza com que são feitas aparecem no resultado final dos produtos e acredito que as pessoas percebam isso, diz Simone Moro, dona da marca Profana

Entre os acessórios disponíveis na Profana, estão bolsas e mochilas confeccionadas à mão da etiqueta Me Voy, produzidas com couro vegano por Melina Bastos, a Mel, com uma pegada slow fashion, como define sua criadora (formada em moda pela UniRitter), o que significa que foram concebidas para durar mais de uma estação.

Bolsa de couro vegano da Me Voy

Bolsa de couro vegano da Me Voy

Já os brincos, colares e pulseiras à venda na loja de Simone saem das mãos da artista visual Raquel Tessari, que utiliza materiais como retalhos de tecidos para compor os acessórios. Ela também cria objetos de escultura expostos na plataforma Artluv.

Um dos atributos que diferencia a tendência conhecida como handmade no mercado é a exclusividade dos modelos.

Ainda que existam peças parecidas, elas nunca serão 100% iguais, ao contrário da produção em série da indústria. Além disso, pela característica do processo artesanal, é certo que não serão produzidas em grande quantidade.

– A peça feita à mão assegura identidade e desperta a curiosidade ao redor. É bem provável que se escute alguém dizer: “Nossa, que diferente! Onde será que ela comprou?”, repara Raquel.

Detalhe da gargantilha Ninfa da Terra, de Raquel Tessari

Detalhe da gargantilha Ninfa da Terra, de Raquel Tessari

Outro fator que contribui para ampliar o espaço é a acolhida junto ao público do conceito de consumo consciente, principalmente no mundo da moda.

– Hoje em dia, cada vez mais pessoas querem saber a procedência daquilo que estão comprando, diz Luísa Padilha, que criou a Alma Velas Naturais em 2016.

Conforme Luísa, esse contingente expressivo de consumidores não deseja adquirir algo que, em seu processo de produção, cause prejuízos ao meio ambiente ou recorra a trabalho escravo, ainda que seja do outro lado do planeta. Ao mesmo tempo, cresce o apoio às cadeias produtivas da economia local, acrescenta ela.

Vejamos exemplos concretos. Em geral, as velas industrializadas utilizam em sua composição a parafina, que deriva do petróleo. Em contrapartida, Luísa produz velas com cera de soja, óleo de coco e essências como alecrim e lavanda, que dão aroma ao produto.

Não bastasse originar-se de um recurso que não é sustentável, a parafina não é totalmente inofensiva para a saúde.

– Em pequenas quantidades, não faz mal. Mas quem tem o costume de acender uma velinha todo dia poderá ter algum prejuízo, sustenta Luísa.

Velas produzidas com cera de soja, óleo de coco e essências naturais: para momentos de conexão e celebração

Velas produzidas com cera de soja, óleo de coco e essências naturais: para momentos de conexão e celebração

Filetes de ouro

A preservação do meio ambiente é compartilhada em larga escala pelos empreendedores que atuam na área de handmade.

No estúdio Alma Objetos Cerâmicos – um galpão de 160 metros quadrados, localizado no bairro Santa Cecília –, não é diferente. Ali, são fabricados utensílios de cozinha de argila, como copos, pratos e tigelas, de modo totalmente artesanal.

Antes de se dar início à produção, a argila passa por uma pré-lavagem em recipientes isolados para que os resíduos não escorram pela rede de esgoto. Além de preservar o ambiente natural, a pré-lavagem diminui pela metade o consumo de água do galpão.

De outra parte, as sobras de argila provenientes de louças defeituosas são reaproveitadas para a confecção de novos utensílios, a menos que o material já tenha passado por etapas avançadas do processo de queima. Neste caso, a louça que sai do forno com rachaduras ou quebras fica guardada num baú para ser vendido na época do Natal como item de decoração.

– As rachaduras até produzem um efeito bonito, salienta Marina Carvalho, psicóloga que abriu o estúdio de cerâmica em 2017, depois de trabalhar como analista de comportamento e tendências de consumo numa corporação de fast fashion.

O comentário de Marina sobre o impacto estético das rachaduras está alinhado ao wabi-sabi, um conceito de origem zen-budista que prega a aceitação de tudo que é imperfeito, impermanente e incompleto.

No Japão, a concepção do wabi-sabi é aplicada às práticas manuais por meio de uma técnica de reparação da cerâmica danificada com filetes de ouro, conhecida como kintsugi. Nela, não há a mínima preocupação de esconder remendos, os quais ficam expostos como cicatrizes.

– É como se essas cicatrizes fizessem parte indissociável da história daquela peça e, por isso, devessem ser preservadas, observa Marina.

A filosofia do wabi-sabi não é a única inspiração do Oriente que afeta a Alma Objetos Cerâmicos. Embora o design minimalista se aproxime do estilo da cerâmica escandinava, especialmente da Dinamarca, é a sabedoria oriental que inspira o portfólio de produtos. Exemplo? “Se está quente para pegar, está quente para beber”, ensina um ditado japonês. Coerente com essa orientação, o estúdio não produz xícaras – apenas copos.

– A alça faz com que a pessoa deixe de sentir a temperatura da bebida, justifica Marina, atenta aos impactos do café excessivamente quente sobre a saúde.

A maior parte da produção abastece restaurantes, mas os copos de argila produzidos no galpão de Santa Cecília emolduram também o cafezinho servido aos clientes do Cubo, salão de beleza que tem como lema elevar o corte de cabelo a um padrão de arte e moda. Ademais, os grãos do café sorvido no estabelecimento são plantados pelas mãos de agricultores de Minas Gerais, graças ao trabalho de prospecção feito em parceria com a Baden Torrefação de Cafés Especiais.

A adesão não é fortuita. Além de estar no DNA do fundador do Cubo, Artur Lopes, que é filho de artesão, a moda de artigos feitos à mão se encontra em plena sintonia com a proposta da casa:

– Aqui, a cada 30 minutos, exercitamos o handmade ao cortar os cabelos dos clientes. E, assim como o corte de cabelo, o café que oferecemos tem que ser personalizado, explica Artur.

Tigelas de argila do estúdio Alma Objetos Cerâmicos: design escandinavo, inspiração do Oriente

Tigelas de argila do estúdio Alma Objetos Cerâmicos: design escandinavo, inspiração do Oriente

Brincos de aborígenes

Seja com auxílio de agulhas, tesouras ou diretamente com as mãos, um elemento imprescindível do trabalho manual é a paixão.

– É como preparar a massa do pão. Se a pessoa não estiver a fim, não vai ficar saboroso, observa Artur.

De modo geral, o handmade pressupõe a intenção de fazer com que os rituais cotidianos ganhem significados especiais. Marina crê que os fatores subjetivos inerentes ao processo de criação são percebidos pelo consumidor.

– Naturalmente, a alimentação está relacionada ao zelo e à responsabilidade que a pessoa precisa ter consigo mesma. Estou certa de que o ato de comer num prato feito à mão acentua essa percepção.

No caso da Alma Velas Artesanais, a ideia é que, ao acender uma vela em casa, a pessoa tenha um momento de conexão consigo própria.

– É costume se acender velas em ocasiões especiais. Queremos que se faça isso como um ritual diário de celebração, que independa de motivação, afirma Luísa Padilha.

Em sentido inverso, é de se supor que a sensação de encantamento gerada pelos artigos feitos à mão junto aos consumidores já esteja presente nas etapas de gênese dos produtos.

– O processo de criação é uma aventura divertida!,garante Alexandre Lopes Fagundes, do Luz Feito à Mão, atelier de luminárias abrigado no Galpão Makers, um espaço coletivo de produção de pequenos empreendedores do Quarto Distrito.

Natural de Santa Maria, Alexandre foi criado num ambiente essencialmente feminino, no qual despontava o talento da mãe, dona Irene, costureira de mão cheia. Inspirado por ela, ainda pequeno ele criava com as mãos desde bonecas de pano até tiras de macramê para suspender vasos de porongo. Na adolescência, recolhia restos de couro da sapataria de Seu Fontana, que ficava em frente de casa, para produzir sandálias e brincos.

Cá entre nós, pelo tamanho avantajado, aqueles brincos se assemelhavam mais a lustres pendurados nas orelhas.

– Acho que só os aborígenes tropicais usavam algo parecido, compara Alexandre, com bom humor.

Seja como for, os brincos de modelo extra grande da adolescência se constituíram num presságio do que viria a acontecer.

Atualmente, Alexandre fabrica luminárias de verdade, a partir de materiais descartados, preferencialmente metais e madeiras, alguns dos quais recolhidos no meio da rua, entre uma pedalada e outra.  

– Às vezes, quando ando de bicicleta, alguns resíduos se apresentam para mim. É como se me dessem uma piscadela de olho, brinca ele.

Veja abaixo alguns trabalhos do atelier Luz Feito à Mão, que também promove oficinas para a criação de luminárias personalizadas e únicas.

RITUAL DE MULHERES

É consenso que as práticas manuais estão relacionadas à feminilidade desde eras ancestrais e que, nos diferentes momentos da história, elas parecem indicar o papel e o lugar da mulher na sociedade.

Na maior parte do tempo, esse lugar não era de destaque. Ao contrário, reforçava o papel secundário atribuído ao sexo feminino pela sociedade, que delegava o protagonismo das atividades produtivas exclusivamente aos homens.

– Essa posição submissa ficou estabelecida lá atrás, quando se definiu que as mulheres ficariam em casa cuidando dos filhos, enquanto os homens iriam caçar ou trabalhar nas plantações, diz Raquel Tessari.

Não à toa, até boa parte do século XX as artes manuais faziam parte da grade curricular de colégios internos femininos. Dizia-se que as meninas tinham que aprender já na escola a enfeitar o futuro enxoval de casamento.

Não é de admirar que dona Alda, a bisavó da relações públicas Juliana Macedo, tenha se iniciado nas artes do crochê no Colégio Bom Conselho.

– Ela contava que, de manhã, estudava português, matemática e outras matérias comuns. À tarde, voltava para as aulas de crochê.

No ambiente familiar, aliás, Juliana cresceu rodeada de mulheres que se dedicavam aos afazeres manuais. A avó Norma pintava vidros e porcelanas. Já a mãe, Taís, foi quem lhe ensinou a bordar.

– Era também um jeito de fazer com que as filhas ficassem quietas. Ela nos botava a organizar as linhas, recorda.

Juliana trabalhou como produtora de eventos e designer de experiência até dezembro do ano passado. Gostava da parte criativa, mas as funções operacionais a exauriam.

– Em certo momento, me senti esgotada. Estava apenas repetindo processos, sem aprender ou criar.

Canoa: um olhar contemporâneo sobre técnicas tradicionais

Canoa: um olhar contemporâneo sobre técnicas tradicionais

Num feriado que passou no sítio da avó Norma, em Eldorado do Sul, teve o impulso de retomar as técnicas artesanais aprendidas lá na infância. A primeira coisa que fez foi tomar posse da máquina de costura que a bisavó havia lhe deixado de herança.

Entusiasmada, ela foi mais adiante: resolveu transmitir o legado de dona Alda ao constituir a Canoa, empresa que promove oficinas e workshops de resgate de técnicas manuais com um olhar contemporâneo, acrescentando-lhe outras manualidades e formas de arte (as atividades acontecem na Alma Objetos Cerâmicos).

Igualmente, não surpreende que a avó da artista têxtil e fotógrafa Bruna Antunes – dona Regina – tenha aprendido os mistérios das agulhas de bordar nos tempos de escola, em São Borja. Bem depois, ela ensinou a técnica do bordado livre para a neta de oito anos de idade, quando a garota passava as férias na região da fronteira.

– Como eu morava em Porto Alegre, o período de férias era o momento de ficar perto, conviver mais com ela. Eu observava como ela bordava e depois procurava imitar.

De volta à capital do Estado, o aprendizado de Bruna prosseguiu através do convívio com sua madrinha, tia Maura, adepta da técnica do ponto cruz, que estava em voga na década de 1990.

– Tive a sorte de ter essas duas mulheres como referências. Em minha cabeça de menina, imaginava que todas as famílias eram assim, afirma.

Bruna chegou a cursar ciência da computação e até se formou como jornalista. Mas no Natal de 2015 – não por acaso, depois de revisitar a avó em São Borja – tomou a decisão de dar aulas de bordado. Criou um evento no Facebook oferecendo 15 vagas de alunos. Em seguida, fez as malas para passar a virada do ano na praia de Xangri-Lá e desligou o celular.

– Quando voltei para casa, vi que havia 60 pessoas inscritas no evento, relembra.

Hoje, ela é responsável pelo projeto Bordado Empoderado, que já ensinou mais de 1.200 mulheres a bordar a partir de uma perspectiva feminista (com frases e símbolos de empoderamento feminino). A ação deu frutos – 12 alunas de Bruna criaram suas próprias marcas de bordado, transformando-se em empreendedoras.

As aulas se realizam no Obra Café, na Avenida Osvaldo Aranha, onde também esteve em cartaz a mostra Mulheres de Luta, que reunia trabalhos de pintura, aquarela, caligrafia e outras técnicas combinadas ao bordado com temática feminista de autoria de Bruna e suas alunas.

A retomada das técnicas manuais se dá num contexto de exaltação do protagonismo feminino (imagem de oficina do Bordado Empoderado)

A retomada das técnicas manuais se dá num contexto de exaltação do protagonismo feminino (imagem de oficina do Bordado Empoderado)

bordadeiras feministas

Os trabalhos de Juliana e Bruna demonstram que, de uns tempos para cá, a arte manual de suas bisavós, avós, mães e tias ganhou nova configuração – a técnica artesanal se transformou em expressão de arte e engajamento feminista.

Essa reviravolta se deve a ativistas como a americana Julie Jackson, criadora do blog Subversive Cross Stitch (Ponto Cruz Subversivo, em tradução literal).

Em 2003, para aliviar o stress causado por um chefe “valentão” e “cruel”, ela começou a postar bordados com palavrões num site a princípio dirigido só aos amigos e às amigas. Descoberta pelo público, a página ganhou um efeito viral, disseminando-se rapidamente pela web, a tal ponto que se transformou num negócio – hoje, Julie disponibiliza a “terapia” através de kits que contêm os moldes com as expressões desbocadas, além de escrever livros sobre o tema.

Outra manifestação contemporânea das práticas manuais é o bordado artístico da britânica Sally Hewett, que retrata o corpo feminino em sua diversidade de cores e formas, rompendo com padrões estéticos que oprimem as mulheres.

No Brasil, artistas como Karen Dolorez também adotam atitudes de contestação ao criar grandes painéis espalhados pelos muros das cidades, aplicando técnicas que aliam o crochê e o grafite na abordagem de temas tabus, como a nudez feminina. Sem falar na marca Tramp Gramma, da artista têxtil Maria Celina Gil, que produz peças de bordado e crochê que ela própria define como “experimentais, subversivos e delicados”.

É verdade que, mesmo espelhando uma posição subalterna na sociedade, os rituais das bisavós, avós, tias e mães não deixaram de fortalecer ao longo do tempo os territórios femininos, à medida que representavam para as mulheres uma chance única de conversar sobre dúvidas, medos e outros temas pessoais sem a presença dos homens, como aponta Raquel Tessari.

Em outras palavras, naqueles encontros de comadres, já estava plantada a semente de um protagonismo feminino que agora vem à tona.

– As antigas bordadeiras talvez tenham sido as primeiras feministas, diverte-se Juliana Macedo. Em seguida, ela conclui: – Tudo o que queremos é trabalhar a destreza dos dedos, a combinação de texturas e materiais e o senso estético para criar coisas lindas com as próprias mãos e, assim, aprofundar a relação com o nosso ser.