Sua Excelência, o botequim
Um dos últimos botecos autênticos do Centro, o bar Odeon resiste à passagem do tempo com um público jovem e música de qualidade
Imagine um bar que fica num lugar histórico e charmoso, onde é possível unir música, chope e bolinho de bacalhau num ambiente de simplicidade e acolhimento.
Não precisa imaginar – o bar existe. É o Odeon, um dos últimos autênticos botequins do Centro da cidade.
Pouca coisa mudou no visual do Odeon desde a inauguração, há mais de 30 anos.
As paredes revestidas de azulejo e madeira ainda exibem antigos rótulos da cervejaria Brahma. A decoração mostra a imagem da Rua da Praia à noite, com automóveis dos anos 1940 estacionados junto ao cordão da calçada, ao lado do retrato da Jazz Cruzeiro, orquestra fundada na capital gaúcha na década de 1930.
Afinal, qual é o segredo do sucesso e da longevidade do Odeon?
– Sinceramente, não sei te dizer, responde Celestino Paz Santana, o Tino, de 70 anos.
Ele fundou o Odeon com Ivan Pedro de Carvalho, colega de escritório de advocacia. Para surpresa de ambos, o bar ficou abarrotado de gente já no primeiro dia em que abriu as portas – uma sexta-feira, 25 de outubro de 1985.
– Não era um negócio, e sim um prazer. Imaginávamos que íamos beber de graça e, com sorte, ganharíamos algum trocado, relata Tino. Em seguida, ele acrescenta: – Talvez tenha dado certo por causa do ambiente de despojamento que criamos, sem regras ou burocracias que pudessem chatear as pessoas.
Figuras lendárias
Foi Ivan Pedro quem achou o lugar ideal para abrir o boteco, na Rua Andrade Neves, 81, no coração do Centro Histórico, quase em frente ao antigo Club dos Caçadores, famoso cassino/cabaré da capital gaúcha no começo do século passado.
O ponto estava em vias de ser desocupado pelo salão de barbearia de um espanhol chamado Etil – coincidência ou não, o nome do barbeiro foi interpretado como um bom augúrio para que ali se abrisse um estabelecimento de atividades etílicas.
Já o nome do bar é alusão ao tango Odeon, de Ernesto Nazareth, composto em 1909, época em que o músico tocava piano na sala de espera das sessões do cinema Odeon, no RJ.
Os fundadores do botequim chamaram Beto Canarinho, a quem conheciam da boemia, para completar a equipe – algum tempo depois, Ivan Pedro foi aprovado num concurso para a Procuradoria do Estado e deixou o negócio nas mãos dos amigos.
Pelo Odeon passaram figuras célebres da cidade, como o flautista Plauto Cruz, um dos maiores nomes da música instrumental do RS, falecido no ano passado. Na segunda metade da década de 2000, ele tocou ali ao lado da pianista Dionara Schneider.
Nos últimos tempos, adoentado, Plauto chegava numa cadeira de rodas e Tino o ajudava a se acomodar no palco.
– O Odeon foi o último lugar em que ele se apresentou, sublinha Tino, orgulhoso.
O garçom Elpídio Martins é outra figura lendária que marcou presença no Odeon, depois de criar fama em botecos como o Pelotense e o Alaska.
Quando trabalhou no Odeon, ainda não era costume da casa anotar as despesas dos clientes em comandas, mas isso não trazia dificuldades para ele.
– O bar podia estar lotado, não importava. O Elpídio guardava de cabeça o que cada um gastava, recorda Tino.
Caso alguém alegasse prejuízo, o garçom refrescava a memória embriagada do freguês com detalhes que não lhe haviam passado desapercebidos: “Olha, de saída tu pediu dois chopes, lembra? E quando o teu amigo chegou, mais dois... Agora, quando puxou assunto com a mulher da mesa ao lado, foram outros quatro, já esqueceu?”. E assim por diante.
Arte e ciência
O segredo bem guardado do Odeon talvez seja o perfil boêmio dos responsáveis pelo bar.
Antes de se transformar em bodegueiro, Tino era frequentador assíduo da Esquina Maldita (Avenida Osvaldo Aranha com Sarmento Leite), próxima do campus central da UFRGS, no Bom Fim. Naquela época, a militância estudantil desaguava invariavelmente em bares como Alaska, Estudantil e Mariu's.
Já Beto Canarinho é um dos porto-alegrenses que mais conhece a vida noturna da cidade, de corpo presente.
No extenso currículo de notívago, antes do Odeon, Beto só batia ponto nos botecos como frequentador. Com uma exceção, é verdade: ele trabalhou no Brahm’s, na esquina da Rua Garibaldi com a Avenida Cristóvão Colombo, mas isso foi lá nos anos 1960.
É que, certa noite, no Brahm’s, alguém faltou ao serviço, o que fez com que ele pulasse para o outro lado do balcão, onde aprendeu aos poucos a arte e a ciência de tirar o chope do barril.
– Demorou um mês para eu botar a mão no barril. Não é como cerveja, que é só abrir a tampa da garrafa, ensina Beto.
Após alguns segundos de suspense, ele puxa da carteira um recorte amarelado de jornal. É a coluna de dicas de bares e restaurantes de um exemplar de Zero Hora, de 1967, com destaque para o “filé comovente” do Brahm’s.
– Adivinha quem escreveu?, desafia. Ante o silêncio constrangido do interlocutor, ele próprio responde: – Luis Fernando Veríssimo, é lógico! Não percebeu o estilo?, reprova, impaciente.
A propósito: a nota de ZH não é o único papel dobrado que conserva na carteira. O artefato de couro acomoda outras preciosidades, como a escalação do time do Botafogo de 1968!
Para encurtar o assunto, Beto trabalhou no Brahm’s apenas para ajudar o dono do bar, amigo de longa data. Quando o boteco mudou de proprietário, retomou a vida de boêmio.
Um observador atento perceberá que Beto entremeia as histórias que conta com o hábito de assobiar. É uma marca que o caracteriza faz tempo, por isso, aliás, ganhou o apelido de Beto Canarinho.
Atribui o costume a uma faceta de sua geração.
– No meu tempo, os rapazes tinham que saber assobiar. Quem não sabia era como se fosse aleijado. Assobiava-se até para as mulheres, mas isso não pode mais, observa ele, com um sorriso malicioso.
Para Beto, particularmente, o que distingue o Odeon na cena boêmia é o ambiente de bom gosto e refinamento que por ali se estabeleceu.
– Quase não existem mais bares com uma atmosfera europeia em Porto Alegre, como ainda se encontra em Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro. Hoje, é tudo americanizado.
Ele dá alguns passos pelo salão e aponta para o material de que é feito o conjunto de mesas e cadeiras:
– Esse é o trio europeu: pedra, madeira e ferro. Não é acrílico. É disso que estou falando, enfatiza.
Encostado no balcão, o sociólogo Edson Canabarro, um dos mais antigos frequentadores, que até então apenas escutava a conversa, dá a sentença:
– O Odeon é um dos poucos bares da cidade que não se desviou de sua natureza e vocação. O pouco que mudou foi para melhor, pontua Edson, citando a opção por música ao vivo como um exemplo de modificação positiva.
Solo de clarinete
É verdade, até meados da década de 2000, o Odeon não tinha música ao vivo e ficava aberto até no máximo dez horas da noite.
Foi quando Tino resolveu alterar o perfil do botequim. Com uma das tantas crises que amiúde atinge a economia do País, o movimento tinha despencado. Ele precisava inventar uma novidade para dar a volta por cima.
– Poderia abrir para almoço, quem sabe vender empadinhas... Mas será que eu estava a fim de fazer isso? Tinha que achar uma boa alternativa não só do ponto de vista econômico, mas principalmente que me fizesse feliz, argumenta.
Daí veio o estalo. Tino comprou um piano para abrigar shows de jazz, tango, chorinho e MPB, esticando o horário do bar até perto da meia noite.
Atualmente, as terças-feiras estão reservadas para apresentações de tango com o bandoneon de Rafael Koller e o piano de Dionara Schneider. Participa ainda Bernardo Zubaran, filho de Dionara, tocando harmônica.
Às quintas, é a vez do pianista Fernando Corona e, às sextas, as noites de jazz com Cláudio Sander (saxofone) e Luiz Mauro Filho (piano) atraem o maior público da semana. Aos sábados, pelo menos uma vez por mês, se apresenta a banda JazzGig.
Além do elenco fixo, não é raro que outros nomes participem eventualmente da programação musical, como o guitarrista Dinho Oliveira e o trompetista Luiz Fernando Rocha.
Em certas ocasiões, já para o final da noite, o próprio Tino surpreende o público ao aparecer inesperadamente no salão, tocando clarinete ou entrando em cena para cantar sambas e boleros.
Desde que acolheu os artistas, o Odeon se transformou num ponto de referência de música de qualidade em Porto Alegre. Mais que isso, a agenda musical angariou uma clientela mais jovem para o bar da Andrade Neves.
– Eu me sinto à vontade lá, seja pela simplicidade do lugar ou pela música que não se compara à de nenhum outro bar da cidade. Beber e conversar com os amigos na calçada é certeza de uma noite incrivelmente massa, diz a publicitária Débora Moreno, que passou a frequentar o Odeon nos últimos anos.
Para se ter ideia do rejuvenescimento do Odeon, atualmente a maioria dos clientes é da nova geração. Quanto à freguesia arrebanhada ao longo de mais de 30 décadas, é preciso dizer que boa parte permanece fiel, mas há os inevitáveis desfalques. Afinal, a idade chega, e com ela o impulso de largar a madrugada.
Por falar nisso, segundo Beto Canarinho, há três sintomas a que um boêmio precisa estar atento para saber o momento adequado de pendurar as chuteiras – no caso, o copo.
– O sujeito sai de casa na hora em que costumava chegar para dormir. Ou então abre a geladeira e vê que dentro tem mais comida do que bebida. Mas o xeque-mate é quando a conta da farmácia está maior do que a do bar, conclui Beto, com a sabedoria de quem conhece a noite como poucos.