A noite não é uma ciência exata
A paisagem histórica da Travessa dos Venezianos ganha vida nova com a ocupação da galera boêmia e alternativa do bar Guernica
Em dezembro de 2019, o bar Guernica comemorou o fechamento da primeira temporada de atividades com a festa A Noite Não É Uma Ciência Exata, nome inspirado numa canção do uruguaio Jorge Drexler.
— Para um espaço como o Guernica, que não segue uma rotina na qual tudo deva estar previsto e planejado, mas sim aberto ao lado humano e informal da vida, com suas histórias de amor e encantamento, o título da música de Drexler faz muito sentido, diz Pepe Martini, que administra o bar com o pai, Roni.
A frase de Drexler também ilustra a metamorfose de um dos redutos mais bonitos e cativantes de Porto Alegre. Desde que abriu as portas ao público, em 21 de março deste ano, o Guernica reposicionou a Travessa dos Venezianos no mapa da noite de Porto Alegre. Depois disso, essa paisagem histórica da capital gaúcha ganhou vida nova ao ser ocupada – pacificamente, diga-se de passagem – por uma galera afeita à boemia e à vida cultural.
Para quem não sabe, o Guernica está alojado numa das 17 casinhas de porta e janela, com pé-direito alto, construídas no começo do século XX para acolher a população pobre do bairro Cidade Baixa, principalmente ex-escravos e seus descendentes, atraídos pelo aluguel barato. Por absoluto merecimento, em 1980 a Travessa dos Venezianos foi tombada como patrimônio histórico e cultural da capital gaúcha.
Em pouco tempo o Guernica passou a reunir um público animado de jovens (e nem tão jovens) atraídos não só pelo cenário histórico, mas também pelo cardápio de gastronomia artesanal e vegana e a programação musical oferecida pelo boteco, com shows acústicos de samba, música latino-americana e ritmos nordestinos.
Um dos principais atrativos do bar é a própria Travessa dos Venezianos, que abre a possibilidade de boemia ao ar livre, de preferência sob o luar. Com uma das saídas (junto à Rua Lopo Gonçalves) interditada para veículos, a circulação de carros se limita aos que estacionam junto ao cordão da calçada, com motoristas obrigados a manobrar com cuidado.
O Guernica se destaca também por certa informalidade das relações entre proprietários e público ou mesmo entre os clientes. Para isso, contribui o ambiente do bar – afinal de contas, é uma casa de verdade!
— Muita gente diz que gostaria de morar aqui, conta Pepe, acrescentando que, exceto reparos elétricos e climatização, pouca coisa foi alterada quando o recinto foi transformado em bar.
Com cerca de 60 metros quadrados, contando o mezanino, a limitação de espaço é mais um fator que ajuda a aproximar as pessoas.
Essa convivência compulsória, no bom sentido, acelera a criação de amizades, de acordo com o proprietário:
— A gente brinca que, em noites movimentadas, a pessoa está sempre a 30 centímetros de outra, o que faz com que, por quase nada, ela esbarre o cotovelo e peça desculpas. Aí já começam um olhar e uma troca de ideias.
Um atributo que cativa o público é o atendimento, que Pepe qualifica como “nem hostil, nem servil”, mas “gentil e humano”. Como assim?
— Não tem a figura do garçom chato e bajulador, que pergunta a toda hora se a pessoa quer alguma coisa, mesmo porque a galera, que já vem com uma cultura alternativa, não vai gostar disso.
Ao mesmo tempo, ele acredita que a equipe de atendimento conseguiu alcançar um grau de eficiência bastante aceitável e compatível com “as limitações, sejam elas de espaço físico, financeiras ou propriamente humanas”.
Como se não bastasse, a casinha do nº 44 da Venezianos tinha já uma história ligada à arte e à cultura antes de abrigar o Guernica.
A proprietária do imóvel, a artista plástica Ana Paula Henrique, montou ali um atelier na primeira década do século XXI. Mais para trás, a construção pertenceu ao jornalista Antônio Carlos Rosito, que, aliás, foi quem teve a iniciativa de reformá-la no início dos anos 1980, formatando o design preservado até hoje.
Rosito fez da residência um ponto de encontro para receber amigos, entre eles, o artista plástico Will Cavalcanti, o Cava, o ator Marco Antonio Fronchetti e o filósofo Júlio York, entre outras figuras do círculo de artistas e intelectuais da cidade em sua época.
Nos primeiros meses, o barzinho da Venezianos não tinha hora para fechar e os serões se esticavam até altas horas.
— Todo jovem é imprudente, e o Guernica não foi diferente. No momento inicial, a empolgação fez com que as madrugadas fossem longas e profundas, admite Pepe.
De um lado, o horário flexível contribuiu para que as pessoas tivessem mais tempo para degustar a proposta do bar, mas o desgaste físico dos proprietários (afinal, os afazeres de quem trabalha em bar também incluem tarefas sob a luz do sol) e alguns protestos da vizinhança impuseram restrições previsíveis ao expediente da bodega.
Por sinal, a preocupação com os vizinhos é constante. Segundo Pepe, sempre que há reclamações, os donos se reúnem para avaliar como compatibilizar a demanda da vizinhança com as atividades do bar.
Mais que isso, quando percebem atitudes inadequadas, dentro ou fora do botequim, os donos do Guernica numa ação preventiva advertem os mal comportados – “sem moralismo ou violência” – para os direitos inalienáveis dos moradores da Travessa. Dessa forma, ele garante ter neutralizado os conflitos até aqui.
O perfil do público ajuda a minimizar o risco de distúrbios. Segundo Pepe, é uma turma politizada, “sentimentalmente diferenciada”, que tem consciência de onde está pisando e assume responsabilidades sobre uma ideia socialmente equilibrada de cidade e país.
Se mais não fosse, a presença da tia de Pepe, Lourdes da Silva, de 70 anos, que mora na casinha colada à parede do bar, é fator de integração à Travessa e, além disso, radar confiável do humor da vizinhança. Apoiadora de primeira hora da causa, foi Tia Lourdes que alertou Pepe e Roni para o anúncio da casa ao lado que estava para alugar, quando ambos buscavam um ponto para abrir o negócio.
Aliás, o Guernica é, antes de tudo, um bar familiar. Além de pai e filho como sócios, conta com a parceria de Guilherme, irmão de Pepe, músico que se apresenta constantemente no palco do boteco.
A mãe dos rapazes, Eliane, também está sempre por lá, prestigiando as atrações da casa.
Para completar, as mesinhas do Guernica são obra do tio João Alberto, marceneiro de mão cheia, que montou o mobiliário a partir de pallets reciclados, o que tem tudo a ver com o estilo do bar.
direito ao delírio
A festa A Noite Não É Uma Ciência Exata aconteceu no galpão situado na Rua Conselheiro Travassos, no bairro São Geraldo.
O galpão com capacidade para 400 pessoas fica a uma quadra do bar Agulha e a um quarteirão da Terreira da Tribo (sede do grupo de teatro Ói Nóis Aqui Traveiz).
— Estamos em boa companhia, diz Pepe.
Compareceu um público de 400 pessoas, o que representou uma novidade e tanto para os empreendedores. No bar, cabem no máximo 70 pessoas apertadas.
As bandas convidadas foram escolhidas entre as que já frequentam o palco da Travessa dos Venezianos, mas no Quarto Distrito elas terão liberdade para aumentar o volume e a potência do som em face da ausência de vizinhos nas redondezas.
A programação iniciou com uma roda de samba aberta só para mulheres, como ação afirmativa que busca fortalecer a presença feminina no ambiente predominantemente masculino da música.
— Imagino eu que, dessa maneira, elas se sentirão mais à vontade para cantar, justifica Pepe.
Depois, foi a vez da Encruzilhada do Samba, seguida do forró do Baião de Cordel e do repertório latino-americano do grupo Direito ao Delírio (o nome é inspirado num texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano).
Entre uma banda e outra, a pista foi animada pelo DJ Augusto DeeVeeJay.