Nos tempos idos do Pé Palito
Na primeira década do século, danceteria abrigada num brique da João Alfredo foi soberana nas baladas da Cidade Baixa
Uma casa noturna abrigada num brique com cadeirinhas e luminárias penduradas no teto e nas paredes dominou as baladas da Cidade Baixa na primeira década de 2000. Aberto em 2004, na Rua João Alfredo, o Pé Palito foi soberano na cena boêmia durante sete anos, apostando numa trilha sonora elaborada com ritmos brasileiros, principalmente samba, samba-rock e MPB.
Um pouco desse tempo que marcou uma geração de porto-alegrenses foi revivido no sábado, 27/4, quando o DJ residente do Pé Palito, Fred Lima, hoje radicado em São Paulo, animou a pista do In Sano Pub durante a festa DJ Fred – Revendo Amigos, ao lado de Kafu Silva e Fausto Barbosa.
As raízes do Pé Palito remontam aos primórdios da boemia contemporânea da Cidade Baixa. Na primeira metade da década de 2000, um grupo de DJs – entre eles, Jovi Medeiros, Damon Meyer e Manoel Canepa, além do próprio Fred – havia criado um movimento de revitalização da música popular brasileira nas pistas de dança de Porto Alegre.
— A gente era jovem, com uma energia muito boa, fazendo coisas que ninguém tinha sacado fazer naquele momento. Eu, particularmente, tinha decidido que ia ganhar a vida como DJ, conta Fred.
Paulistano, Fred morou em diferentes cantos do Brasil – entre eles, São Lourenço do Sul, Porto Alegre, Foz do Iguaçu e até num núcleo residencial da Vale do Rio Doce, na Serra dos Carajás, junto à floresta amazônica – durante a infância e a adolescência graças à profissão do pai, que trabalhava como barrageiro em grandes obras.
Ele iniciou as atividades de DJ em 1999, aos 23 anos, na capital gaúcha, mais precisamente no Espaço Cultural Axé Bahia, na Rua José Bonifácio, com a festa Baseado na MPB. Depois disso, participou do coletivo Zazauera, formado por jovens ligados às artes e à psicologia – algo como uma insólita comunhão de Jorge Benjor com Giles Deleuze –, que promovia festas itinerantes em locais a exemplo da Terreira da Tribo e do Centro Cenotécnico (perto da rodoviária). Na maior delas, em 2001, durante o Fórum Social Mundial, apareceram 700 pessoas de diferentes idiomas na Mansão das Artes (na Oscar Pereira, próximo aos cemitérios).
Foi também sócio do Atelier 5, refúgio underground do início do século XXI em Porto Alegre, com Patrícia Duarte (com quem estava casado na época) e o ator Plínio Marcos. Era um bar improvisado nos cômodos de uma casa antiga da Rua José do Patrocínio, em frente à Praça Garibaldi, que agitou a noite da cidade de fevereiro a outubro de 2003, quando foi fechado pela prefeitura.
A experiência com o Atelier 5, ainda que interrompida bruscamente pela interdição da casa, havia evidenciado que existia público para as festas de MPB e, portanto, era possível transformar em realidade o sonho de se profissionalizar como DJ.
Ainda que nos tempos atuais seja difícil imaginar esse cenário, na virada do século a Rua João Alfredo era uma via pacata, que serpenteava as bordas do bairro boêmio, com um DNA repleto de histórias relevantes da capital gaúcha, as quais remontam aos tempos da escravidão.
Para quem não sabe, antes da canalização do arroio Dilúvio – obra concluída nos anos 1950 –, a João Alfredo acompanhava o traçado sinuoso do riacho, cujas águas barrentas batiam nos muros dos pátios de fundos do casario do lado ímpar, antes de desaguarem no Guaíba, pouco adiante da Ponte de Pedra.
Por ser uma área exposta a frequentes inundações, foi originalmente habitada por gente de modesta extração social, especialmente escravos e seus descendentes, além de imigrantes italianos e judeus. Desse modo, as origens afro-brasileiras fizeram da João Alfredo desde cedo um palco de festas de rua e cantoria de botequins, além de exemplo de convivência próxima e fraterna, independente de idade, sexo ou cor.
No início dos anos 2000, havia apenas três bares – Oficina Etílica, Mercatto D’Arte e Ossip – na João Alfredo, que se transformaria mais adiante na mais badalada artéria da Cidade Baixa. A cena mudou quando as casinhas passaram a ser ocupadas por pubs como Nega Frida e Paraphernália, entre outros.
Algumas quadras adiante, o Mr. Dam ganhava espaço na José do Patrocínio, ao lado do Opinião, igualmente apostando numa trilha sonora inspirada em MPB. Bares de menor porte, como o Escambo, na Luiz Afonso, e o Psicoarte, na Lima e Silva, também promoviam festas com música brasileira. Abria-se um campo de trabalho para a nova geração de DJs.
Boa parte das festas das redondezas era promovida pela Artimanha de Bamba, produtora criada por Jovi, Naco (Ronaldo Guimarães Bordalo, artista plástico e agitador cultural, residindo atualmente na Ibiraquera, em Santa Catarina) e Fred Cabelo (Frederico Alabarse, hoje radicado em Paris). Naquele momento, rolavam festas também em casas particulares, como a do artista plástico Darlan Godinho, na Rua General Salustiano, em frente à Usina do Gasômetro. Lá, num réveillon, Fred tocou 12 horas seguidas! Mas não por isso a casa/atelier de Darlan ficou marcada na memória do DJ, e sim porque nela teve início a história da danceteria Pé Palito.
Até ali, o Pé Palito era um brique de “antiguidades modernistas” da João Alfredo. O proprietário, Marcos Dorneles (falecido em 2018), circulava bastante à noite e frequentava as festas de Darlan. Numa delas, um baile a fantasia, Marcos chegou com uma pele de onça atravessada sobre uma minissaia, dizendo inspirar-se na figura de Fred Flintstone. Ele se aproximou do discotecário e sussurrou ao pé do ouvido:
— Fred, vamos fazer uma festa no Pé Palito para ver o que acontece.
Numa época de vacas magras, quase sem grana para pagar o aluguel, Fred aceitou prontamente o convite. E a primeira festa no Pé Palito foi um grande sucesso.
Para aquecer o público naquela noite fria do inverno de 2004, Marcos pôs na roda um aquecedor movido a carvão. Cerveja, só em latas, guardadas num isopor. A cachacinha com mel Fred foi pessoalmente buscar no bar Tuim, na Ladeira.
Apesar de bem-sucedida, a festa de inauguração do Pé Palito foi subitamente interrompida após uma cena inusitada. Um dos mais animados participantes, Dayal Benítez (garçom do bar Ocidente, na época) resolveu ficar pelado na pista.
Não foi a primeira vez.
— Ficava nu com frequência nas festas. Sempre quando me via chegando, o pessoal já se perguntava: “Que horas o Dayal vai tirar a roupa?”, conta ele, divertido.
Dayal justifica o atrevimento com a deliberada intenção de afrontar o tabu da nudez. Segundo ele, a fixação com a ideia de ficar nu era tamanha que, quando se casou, a esposa Soninha exigiu que constasse no contrato de união estável a proibição expressa de tirar as roupas em público – se é verdade ou apenas uma piada, ninguém sabe.
No Pé Palito, a atitude de desacato fez com que o dono da casa subisse nas tamancas:
— O que está pensando? Só quem pode ficar nu nesta casa sou eu! Acabem com a festa já!
E assim terminou a festa. Ou melhor, ficou suspensa por alguns meses, tempo para Marcos se convencer de que, apesar dos imprevistos, valia a pena fazer mais uma tentativa de transformar o brique em danceteria.
Em pouco tempo, o Pé Palito se tornou a principal referência de casa noturna na João Alfredo, lotando sempre aos fins de semana e vésperas de feriados. Durante a balada, Marcos leiloava as peças do antiquário até se desfazer de todo o acervo, aposentando de vez o antigo negócio. No auge do sucesso, visitantes ilustres prestigiavam a festa, casos dos atores Luana Piovanni e Marcos Pasquim e de músicos como Beto Lee (filho de Rita Lee), Tonho Crocco (Ultramen) e Serginho Moah (Papas da Língua). Alguns, como Marco Matolli (do Clube do Balanço), aproveitavam para dar uma canja no manejo das pick ups e vinis.
Abaixo, veja peças de divulgação das festas do Pé Palito e um cartão de apresentação do brique da João Alfredo.
— Houve um momento em que a festa não acabava mais às seis horas, porque as pessoas continuavam na pista até sete ou oito horas da manhã. Aí a gente falou: “Espera aí, precisa ter uma hora pra acabar”.
Para sinalizar a hora de ir embora, Fred tocava como saideira Trenzinho Caipira, de Villa-Lobos, ou a 5ª Sinfonia, de Beethoven.
Grande parte do sucesso do Pé Palito se deveu à boa organização da danceteria. As atribuições eram divididas de acordo com as virtudes de cada um dos sócios. Marcos cuidava da estrutura física da casa, que conhecia muito bem, uma vez que havia morado nela praticamente a vida. Com boa capacidade de gestão, Nilo Pinheiro se concentrava na parte administrativa, enquanto Patrícia Duarte ficava no caixa e trabalhava na produção das festas. Fred, por sua vez, atraía e embalava o público com a sensibilidade aguçada de um DJ de talento fora do comum.
Ao longo do tempo, uma série de reformas ampliou o espaço dedicado à festa. No começo, o bar contava com 100 metros quadrados. Com a primeira reformulação, dobrou de tamanho. Mais tarde, a área interna aumentou para 400 metros quadrados. Como se não bastasse, Marcos alugaria a casa ao lado para criar o Boteco Pé Palito, versão mais intimista da casa de festas. que funcionava em paralelo.
Em 2011, o Pé Palito encerrou suas atividades – o esgotamento do revival de música brasileira nas pistas e o advento da onda de sertanejo universitário ajudaram a finalizar o ciclo da danceteria da João Alfredo. Atualmente, o local está ocupado pelo Margot Bar & Club.
A bem da verdade, o ciclo do Pé Palito até que durou bastante tempo – afinal, coração do boêmio é volúvel e não costuma se apegar –, ainda mais com o mesmo DJ todas as noites, o que é difícil de acontecer hoje em dia. Além disso, deixou o legado de uma casa noturna bem organizada, que trabalhava num patamar profissional superior em relação às demais de seu tempo, no que se refere à estrutura e ao atendimento, sem falar na indiscutível qualidade musical.
Para Fred, o Pé Palito representou a oportunidade para concretizar o sonho de ganhar a vida com aquilo que mais ama. De volta à terra natal desde 2012, ele é um DJ atuante na cena paulistana, comandando festas como Realce e Marimbondo Sound System. Talvez este tenha sido o principal mérito da danceteria instalada no brique da João Alfredo: privilegiar o ofício do DJ, que nem sempre tem o devido reconhecimento.
— Antes, a figura do DJ era vista quase como subproduto da festa e as pessoas não se dispunham a pagar nem R$ 5 reais para remunerá-lo. Penso que o Pé Palito ajudou a mostrar que o trabalho do DJ é artístico e que ele é importante para a cena cultural da cidade, conclui Fred.