No coração da Ilhota
Localizado na cidade baixa, o Bar da Carla é marco territorial e simbólico da cultura negra em Porto Alegre
Está lá escrito no alvará de 1990.
O Bar da Carla foi fundado num 20 de novembro, data instituída por lei mais de duas décadas depois como Dia da Consciência Negra por coincidir com a da morte do herói da resistência à escravidão, Zumbi dos Palmares, registrada em 1695. Mas não é só essa a razão que faz do boteco uma das principais referências da cultura negra em Porto Alegre.
Aliás, é bem provável que a data de inauguração tenha sido obra de entidades divinas, as quais se aproveitaram de alguma distração da burocracia para arquitetar essa feliz coincidência. Mais simbólico é que o bar localizado na Rua Lobo da Costa, 24, situa-se na confluência de territórios negros que marcaram a história da capital gaúcha.
Ancorado na região da antiga Ilhota – um conjunto de favelas que se espalhava da Praça Garibaldi à Avenida Ipiranga até ser removido ao final da década de 1960 –, não fica distante de espaços de cultura e entretenimento dos descendentes de escravos no século XX, como o clube “Nós, os Democratas” (que no passado ocupava o terreno da Metroplan) e o bar Luanda (colado à Igreja Sagrada Família).
Como se não bastasse, também se encontra próximo a referências atuais como os Quilombos Fidelix e do Areal da Baronesa. Só que nada disso faria sentido se as marcas no tempo e no espaço não estivessem acompanhadas da consciência aguda e afiada da proprietária do botequim acerca da realidade que a cerca:
— Quem nasce preta e pobre num país como esse não pode fingir que as coisas estão correndo às mil maravilhas, diz Carla Maria Rodrigues Soares, a Carla do bar.
Dono de uma sapataria na casa ao lado, o padrasto José foi quem comprou o ponto para que ela abrisse o bar junto com a mãe, dona Ivone (ambos os familiares já falecidos). A militância descobriu a taberna na década de 1990 com ajuda de tio Cláudio, hoje aposentado, que trabalhava na Secretaria Municipal dos Transportes, com sede a poucos passos do boteco.
— Um pessoal que já tinha militância política de esquerda começou a se reunir aqui. Dali por diante, tem sempre algum coletivo marcando reunião. Virou point de negros, indígenas, LGBTs e população de rua, comenta Carla.
Conforme o advogado Onir Araújo, da Frente Quilombola RS, a relação visceral com a história das comunidades negras faz do Bar da Carla um reduto privilegiado de preservação da memória das parcelas excluídas da sociedade.
— Não é apenas um espaço dedicado a dezenas de atividades de articulação da luta contra o racismo. É também um lugar de afirmação de uma cosmovisão da população negra. O melhor de tudo é que está sob o comando de uma mulher negra, afirma ele.
Há mais de dez anos, a Frente Quilombola RS realiza reuniões semanais no local às terças-feiras. Outra parceria de fé é a dos capoeiristas do grupo Guaiamuns, criado há oito anos por José Alberto Ferreira, o Mestre Jaburu.
— A dona Carla nos dá a oportunidade de resgatar uma cultura que estava quase perdida e que não vamos deixar cair no esquecimento, destaca Mestre Jaburu, que mora ali perto, no Quilombo Fidelix.
O Guaiamuns promove às quartas-feiras um sarau “leve e solto” com a leitura de poemas e outros textos referentes à cultura negra. As rodas de capoeira ocorrem às sextas-feiras na calçada ou no interior do bar (caso esteja chovendo).
Além disso, no último domingo de cada mês, o Slam do Trago (coletivo de jovens da periferia que promove concursos de poesia falada) se faz presente.
A casa também está aberta para ações pontuais. Em julho, por exemplo, mais de 100 pessoas assistiram ao debate Mulher Negra Latino-americana e Caribenha e a Lei 10.639/03 (legislação sobre ensino de história e cultura afro-brasileira e africana) com a ativista Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, fundadora e coordenadora do projeto Meninas Crespas, e a vereadora do PSOL Karen Santos.
Em certas ocasiões, a Rua Lobo da Costa é fechada com apoio da EPTC para eventos que combinam espetáculos de música e teatro com feirinhas e rodas de capoeira.
A fama do Bar da Carla já ultrapassou fronteiras. Na década passada, a cada edição do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, o pé-sujo se transformava numa torre de Babel graças à mescla de idiomas que se cruzavam no ambiente. Ainda hoje, volta e meia aparece algum estrangeiro à cata de informações sobre territórios negros.
Atualmente, Carla está envolvida numa luta à parte pela preservação do espaço físico, uma vez que os proprietários manifestaram a intenção de reaver o imóvel alugado.
— A situação me deixa tensa e nervosa. Vivo disso e estou há muito tempo aqui dentro. Minha filha nasceu nessa casa, assinala.
Carla mora nos fundos do prédio junto com a filha Caroline, que faz faculdade de Serviço Social na FADERGS (Faculdade de Desenvolvimento do RS), e as cadelas vira-latas Pipoca e Tchutchuca. Além de atender aos clientes do bar, ela se dedica aos afazeres de sacerdotisa – para quem não sabe, é ialorixá desde 1984.
— Cuido dos meus santos para dar proteção a mim e à minha filha, explica.
Carla se orgulha de jamais ter sido obrigada a apartar brigas dentro do boteco.
— Nunca tive polícia na porta em todos esses anos. É lugar de velhos ativistas e jovens militantes, que não fazem algazarra. Tem discussão política, mas isso é outra coisa. Nem parece bar. É mais a sala de estar onde se reúnem as famílias. Já botei até cama elástica na frente para a criançada brincar.
O bar abre por volta de 4 da tarde e fecha quase sempre antes da meia noite, apesar de o alvará permitir funcionamento 24 horas. O cardápio tem empada e pastel de carne ou queijo. Para beber, latões de Polar e garrafas de 600ml da cerveja Lokal, mas o carro-chefe é mesmo a cachacinha guardada em vidrões na prateleira.
Na verdade, as porções misturam aguardente com sabores diversos, que vão de cravo e pera até carambola e casca de bergamota. A que mais sai é a de barrolda, feita com zimbro, semente de origem alemã.
— Gosto muito da barrolda, sim, mas a de canela é maravilhosa, sugere Onir Araújo, da Frente Quilombola RS.