A avó dos hippies

Emma de mascheville foi criada numa colônia naturista e espiritualista do início do século 20 na Europa e, nos anos 1970, formou uma geração de astrólogos no Brasil

Livro reúne ensinamentos e trajetória de vida da astróloga alemã, que se radicou em Porto Alegre em 1939 (Foto/Fernando Brentano)

Lá pela metade dos anos 1970, um bando de jovens cabeludos bateu à porta da casa na Rua Tiradentes, nº 260, no bairro Floresta, em Porto Alegre. Quase todos vestiam túnicas de algodão e calçavam sandálias de couro, acompanhando a moda hippie da época. Estavam atrás de uma senhora que, naquele endereço, fazia mapa astral e ensinava astrologia – àquela altura, o tema já fazia parte das conversas cotidianas da galera.

— Finalmente — disse Emma de Mascheville, a Dona Emy, ao abrir a porta do sobrado, no quarteirão entre as Ruas Ramiro Barcellos e Dr. Vale (como a maior parte do casario da Tiradentes, a construção foi demolida nas décadas seguintes).

Em seguida, arrastando o sotaque alemão, a astróloga completou:

— Estou esperando por vocês há mais de 30 anos.

A frase enigmática fazia sentido, como veremos adiante. Antes, vamos saber um pouco mais sobre essa personagem fascinante, que se transformou numa das mais respeitadas vozes da astrologia no Brasil.

PARAÍSO AO PÉ DA COLINA

Além de calcular mais de 10 mil mapas astrológicos, ao longo de 78 anos de sua existência, dona Emy desenvolveu uma doutrina pessoal e intransferível sobre a relação do cosmos com a vida humana, Fez isso com base não apenas em estudos teóricos, mas também na observação da natureza e a partir da própria vivência, repleta de acontecimentos inesperados e desafiadores.

Nessa doutrina, sem modelos fixos e irrevogáveis de interpretação, a astrologia é, antes de tudo, uma ferramenta de autoconhecimento:

— Aos que nos perguntam se acreditamos na astrologia, devemos responder: “Não, apenas a observamos!” — dizia ela.

Parte significativa da vida e do pensamento de Emma de Mascheville está reunida no livro O Que o Céu e os Homens Me Ensinaram – Astrologia Para a Era de Aquário, edição independente organizada por Amanda Costa, com coordenação de Antonio Carlos Bola Harres (ambos discípulos de dona Emy).

A obra será lançada nesta terça-feira, 7/novembro, a partir das 5 horas da tarde, na Feira do Livro de Porto Alegre.

O lançamento vai acontecer no auditório do Memorial do RS, junto à Praça da Alfândega, com um bate-papo com Amanda – já a sessão de autógrafos será às 6 da tarde, na Praça de Autógrafos Gerdau. A publicação também pode ser adquirida aqui.

Filha de um pastor protestante e de uma artista plástica, Emma nasceu numa aldeia (atual município de Haimhausen) perto de Munique, na Baviera, em 1903. Dos quatro aos 11 anos de idade, viveu num cenário paradisíaco, à beira do Lago Maggiore, ao pé da colina conhecida como Monte Verità, na fronteira da Suíça com a Itália. Ali, havia se instalado uma colônia espiritualista e naturista, da qual sua tia Ida Hoffmann era uma das fundadoras.

Personalidades famosas daquele inovador e conturbado início de século 20 estiveram em Monte Verità, como o escritor alemão Hermann Hesse e a dançarina estadunidense Isadora Duncan, além do psiquiatra suíço Carl Jung e do filósofo austríaco Rudolf Steiner (fundador da Antroposofia).

— Eu me criei neste ambiente, por onde passaram os grandes reformadores daquela época — dizia dona Emy.

Toque ou clique nas fotos abaixo para conferir como era a vida na comunidade de Monte Verità (todas as imagens publicadas nesta reportagem pertencem ao acervo da família de Emma).

Túnel perfumado

Ao receber os jovens porto-alegrenses na Rua Tiradentes, Emma os conduziu até a garagem da casa, onde costumava dar aulas sobre astrologia. Num quadro-negro (na verdade, de fundo verde) pendurado na parede, simulava o trânsito dos astros para os alunos, que se sentavam no chão ou se acomodavam junto a uma mesa comprida em "bancos de churrasqueira”, como lembra Amanda Costa:

— Desde a primeira vez em que entrei naquela casa, o que me encantou foi o perfume das rosas plantadas no corredor que dava acesso aos fundos do pátio, onde ficava o escritório de Dona Emy — destaca ela.

Emma dando aula de astrologia para jovens nos anos 1970

Certo dia, Emma interrompeu a aula para mostrar uma relíquia aos alunos: um álbum com fotografias da colônia de Monte Verità, que estava guardado, há décadas, no fundo de uma gaveta.

As imagens amareladas traziam à luz a vida dos habitantes da colônia espiritualista em contato próximo com a natureza, que incluía banhos de sol e práticas de dança e yoga, além do plantio de vinhas.

Quando não estavam completamente nus por causa do culto ao naturismo, os moradores de Monte Verità vestiam roupas leves e coloridas, como túnicas de linho, que lembravam – e muito! – a moda usada pelos hippies. 

Além disso, viviam em cabanas de madeira e eram adeptos do vegetarianismo e da medicina natural.

Em suma, cultuavam um estilo de vida que, a bem da verdade, estava bastante próximo do que propunham os jovens dos anos 1960 e 1970.

— E vocês pensam que estão inovando alguma coisa? — indagou Dona Emy, com um sorriso maroto.

espiritualismo no cerrado

A identificação da astróloga com as moças e os rapazes que haviam lhe procurado está posta. Mas por que ela estava esperando pela chegada deles há tanto tempo? Para decifrar o enigma, é preciso saber um pouco mais sobre a vida de Emma.

Em 1925, em meio ao caos instaurado na Europa após a 1ª Guerra Mundial e em busca de novas oportunidades de vida, a família dela desembarcou em Paranaguá (PR) – o pai havia sido convidado para ser representante de um banco alemão, que tinha como clientes imigrantes germânicos no Brasil.

No Paraná, na casa da tia Ida, que tinha se transferido antes para a América do Sul, Emma conheceu o astrólogo, violinista e escritor Albert Raymond Costet de Mascheville, também conhecido como Cedaior, com quem ela se casou. Foi Cedaior quem a introduziu nas artes da astrologia.

Emma jovem

— Eu tinha 22 ou 23 anos de idade. Deixei tudo, casei moça com um sábio de 53 anos, entregando-me de corpo e alma a esse ideal, dois meses depois de eu ter chegado na nova terra — contava ela.

Em seguida, Emma e Cedaior se mudaram para Cristalina, em Goiás, onde participaram de uma tentativa frustrada de recriação da colônia de Monte Verità em pleno Centro-Oeste brasileiro.

O casal – que teve cinco filhos (ela ainda teria outros dois, do segundo casamento, com o egiptólogo e astrólogo Walter Pery Klippel) – viveria também em Palmital, próximo a Joinville (SC), e em São Paulo até se radicar, definitivamente, em Porto Alegre, em 1939.

Antes de morrer, em 1943, Cedaior previu que, no futuro, uma “nova humanidade” surgiria a partir da Califórnia, nos Estados Unidos, como uma ponta de lança da Era de Aquário, que já dava sinais de sua aparição no horizonte.

De acordo com a profecia, essas pessoas iriam praticar o vegetarianismo e o pacifismo, vestindo-se com roupas coloridas e se comunicando pela música, o que veio a se confirmar com o fenômeno hippie, nas décadas de 1960 e 1970.

Eis a explicação para a frase de boas-vindas proferida por dona Emy diante da garotada que lhe procurou, na metade da década de 1970, na capital gaúcha.

Luz e sombra

O trabalho de Emma como astróloga ganhou notoriedade nacional em 1975, quando ela publicou o artigo Astrologia: uma teoria revolucionária, na revista Planeta, na época, uma espécie de bíblia para quem se interessava por temas esotéricos. A partir daí, ela passou a ser convidada, com frequência, para participar de palestras, cursos, congressos e seminários em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Cedaior: astrólogo, violinista e escritor

Em 1980, dona Emy publicou Luz e Sombra – Elementos Básicos de Astrologia, pela Escola Júpiter de Astrologia, de São Paulo, único livro que lançou em vida. Ela morreu de câncer, em 27 de dezembro de 1981.

O Que o Céu e os Homens Me Ensinaram – Astrologia Para a Era de Aquário, lançado agora, complementa os ensinamentos de Emma, que se destacam pela recusa a uma abordagem maniqueísta e simplificadora da vida e do movimento dos astros.

Não à toa, aparentes dualidades, como fé e ciência ou destino e livre-arbítrio, são temas abordados no livro: “Compreendi que não existe o bem e o mal, mas a bipolaridade da vida. A natureza somente cria ação e repouso, o dia e a noite. É a constante transformação do cair e do levantar, que nos parece uma separação, mas, no fundo, é a eterna existência da unidade”, escreveu ela.

Ao longo da obra, Emma faz também um estudo instigante sobre a pintura A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, associando as figuras de cada um dos 12 apóstolos a um signo do zodíaco.

Por fim, O Que o Céu e os Homens Me Ensinaram – Astrologia Para a Era de Aquário inclui trechos de uma carta escrita por Emma, em 5 de julho de 1958, em alemão, para Carl Jung, fundador da psicologia analítica, que conhecera, ainda menina, na colônia de Monte Verità. O livro faz parte do projeto de preservação do acervo de Emma, que abrange também o site dedicado a ela, que é coordenado por Áquila Klippel, filho da astróloga.

Não bastasse ter formado uma geração de astrólogos – além de Bola e Amanda, dela também fazem parte Graça Medeiros, Lídia Fontoura, Cláudia Lisboa e Fábio Mentz, entre outros –, dona Emy contribuiu para o engrandecimento da vida espiritual e cultural de Porto Alegre, graças à dimensão singular de sua figura humana.