Histórias do samba rock
A trajetória do suingue, o samba rock do Sul do Brasil, contada (e cantada) pelos personagens que constroem a cultura popular
Da janela do ônibus, que partia da Praça XV em direção ao bairro Santana, a garota avistou o rapaz apressando o passo para acompanhar a arrancada do coletivo.
— Preciso falar contigo. Onde é que tu moras? — perguntou ele, do outro lado do vidro.
— Não posso falar agora. A minha mãe não deixa.
Vestida de havaiana, Delma Gonçalves tinha acabado de desfilar pela Avenida Borges de Medeiros com outras adolescentes do bloco Garotos da Orgia (embrião da escola de samba Acadêmicos da Orgia), fundado por seus pais, seu Miguel e dona Carlinda.
No percurso, ela havia conquistado a admiração de Leleco Telles, músico da noite que acompanhava os desfiles do carnaval de 1965, no centro de Porto Alegre.
Conforme o ônibus acelerava, ia ficando para trás o rosto aflito do moço. Alguns meses depois, sem combinação, eles se reencontraram num baile de fim de ano, na Avenida Princesa Isabel, animado por Os Rockings, banda da qual Leleco fazia parte.
Mal Delma pôs os pés no salão, o músico abandonou o contrabaixo no palco e a convidou para dançar.
— A gente não se largou por um bom tempo. Acho que o namoro durou uns três anos, mas tinha limites: eu precisava casar virgem por determinação do pai — conta Delma.
Delma e Leleco (falecido em 2004) são personagens centrais de uma rica história da cultura popular, que foi o tema do Conversa de Rua – Memórias e Releituras do Suingue e Samba Rock do Sul, evento que aconteceu dia 23/setembro, no bar Milonga, na Travessa dos Venezianos, na Cidade Baixa.
As canções e as histórias de vida do suingue – gênero criado por artistas negros gaúchos, na década de 1960 – foram cantadas e contadas por Delma, poetisa e compositora, junto com a cantora Joice Mara e o violonista Pedro Chaves. A condução foi do jornalista Paulo César Teixeira, do Rua da Margem.
Festa de aniversário
Não faltou assunto, muito menos belas canções.
Delma e Leleco foram parceiros musicais de Jorge Moacir da Silva, o Bedeu, principal expoente do suingue, que mistura elementos tradicionais do samba com influências da música internacional, como rock, jazz e blues.
Ele é autor de canções de sucesso nacional na voz de artistas como Bebeto, Wilson Simonal, Originais do Samba, Branca di neve, Jair Rodrigues, Fernanda Abreu. Ultramen e Clube do Balanço, a exemplo de Menina Carolina (com Leleco), Grama Verde e Saudades de Jackson do Pandeiro (essa com Luís Vagner).
Nascido em 4 de dezembro de 1946, Bedeu foi criado por mãe, avó e tias na Rua Arlindo (que deu lugar à Avenida Erico Verissimo), no Menino Deus. Assim como Leleco, também integrava Os Rockings, no começo da carreira.
Quando Delma completou 15 anos, ela pediu a Leleco que levasse algum conhecido à festa. A ideia é que fizesse par com Iberi, que morava em frente à casa da família Gonçalves, na Rua Bernardo Pires, no bairro Santana. Ultimamente, a amiga andava triste por conta das traições de um namorado mulherengo.
Leleco apareceu na festa com Bedeu a tiracolo. E quem abriu a porta para a dupla foi Iberi. O cupido devia estar escondido em algum canto do jardim, porque Bedeu e Iberi formaram outro casal (anos depois, eles se casaram e tiveram quatro filhos).
Lá pelas tantas, Delma mostrou a Bedeu um caderno de poesias, que tinha guardado na gaveta. Dali surgiram a amizade e a parceria musical, que se estenderam pelas décadas seguintes.
Na festa, Bedeu também conheceu Darcy, o Cy, irmão de Delma, percussionista que, igualmente, se transformou em parceiro da trajetória de Bedeu. Em 1975, eles estavam juntos no Pau Brasil, com Leleco, Alexandre Rodrigues, Leco e Nego Luiz, grupo que marcou a música black na época e influenciou os rumos do samba e do pagode nos anos 1990.
— Eu digo que o samba rock de Porto Alegre nasceu naquela noite, em minha casa, na festa dos meus 15 anos.
Anote a data: 6 de abril de 1966.
Baile no salão da Carris
As histórias de vida de Delma se entrelaçam com outros astros do samba rock gaúcho.
No dia em que terminou o namoro com Leleco, ela conheceu outra figura lendária – Luís Vagner, o Guitarreiro. Foi num baile do Salão da Carris, na Avenida Venâncio Aires. Ele tocava com Os Brasas, grupo contratado para a festa.
Bastante assediado pelas moças que vinham lhe pedir autógrafos, a certa altura, Vagner se virou para Delma:
— E tu, não vais querer um autógrafo?
— Não trouxe caneta — respondeu ela, sem baixar a guarda.
Quando ele reapareceu com uma caneta nas mãos, Delma não se deu por vencida:
— Não tenho papel.
Então, o músico escreveu uma mensagem na palma da mão dela: “Um dia falaremos de amor”.
— Que nome grande é esse? — indagou Delma, antes de ler o recado.
Vagner se juntou à trupe que, com Delma, voltou do baile para a Rua Bernardo Pires, com o sol já aparecendo no horizonte. Como de costume em ocasiões como essa, a mãe de Delma esperava a moçada com café da manhã completo.
— De onde saiu esse compridão? — perguntou seu Miguel, que ainda não tinha sido informado do fim do namoro da filha com Leleco.
— Senta aí para tomar um café. Tem sopa também — sugeriu dona Carlinda a Vagner, para desanuviar o ambiente.
O namoro de Delma com Luís Vagner não durou muito. Pudera, ele passava mais tempo em São Paulo do que em Porto Alegre. Certo dia, alguém soprou no ouvido da guria que o cantor tinha outra namorada.
Ela foi até a casa do músico, na Medianeira, já decidida a terminar o namoro. Desacorçoado, Vagner compôs a canção Embrulheira. Essa foi demais/Estou sabendo/Vão rasgar o meu cartaz, diz a letra.
O namoro acabou, mas a amizade de Delma e Vagner durou a vida toda (ele morreu em maio de 2021).
Parcerias de vida
Entre as parcerias de Delma com Bedeu, estão sambas singelos e cativantes como Sorriso Lindo, Não Deu Outra, Não Diga Não e Bate Coração.
Já Deixa a Tristeza (O céu é tão bonito) foi a primeira gravação de estúdio do músico, em compacto lançado em 1971, quando ele fazia parte da banda Neno Exporta Som. Do outro lado do disco, está Ellen (Bedeu e Leleco Telles).
— Para nós, chegar a ter um disco gravado em São Paulo foi um feito inédito na época. Poucos artistas negros daqui conseguiam isso, tal como Lupicinio Rodrigues e Zilah Machado. Aquilo foi um divisor de água para mim como compositora.
Depois que Bedeu faleceu, em 5 de agosto de 1999, devido a complicações do diabetes (um ano depois de ganhar o Prêmio Açorianos de Música pelo conjunto da obra), Delma passou a produzir o show Eles e Elas Cantam Bedeu e Delma.
O tributo se repetiu a cada ano por quase duas décadas, em locais como Teatro Renascença, Espaço Afro-Sul/Odomode e Acadêmicos da Orgia.
— Ele foi um visionário na forma de interagir com a cultura do Estado. Para mim, não recebeu o valor que merecia — afirma ela.
Essas e outras histórias do samba rock gaúcho foram relatadas em pormenores no Conversa de Rua – Memórias e Releituras do Suingue e Samba Rock do Sul, entremeadas com a apresentação das canções por Joice Mara e Pedro Chaves.
Joice é uma das principais vozes da música negra de Porto Alegre. Foi integrante da primeira formação do grupo Negras em Canto, além de intérprete do bloco Ile Mulher.
Em 2017, comemorou 30 anos de carreira com show na Casa de Cultura Mario Quintana, produzido por Delma.
Já Pedro, de 29 anos, representa a nova geração do suingue, influenciada pelo legado de Bedeu & Cia.
Em 2017, gravou o primeiro disco pelo selo Rota Independente, com produção de Adriano Trindade. No momento, prepara o lançamento de novas canções, entre elas, Respeite a Vibe!, em parceria com Xannd Sy, que presta homenagem aos suingueiros da antiga.
A noite no Milonga foi um encontro de gerações irmanadas pelo suingue.