A cantoria de Nei Lisboa: show de voz e violão só com MPB convida plateia a curtir o clima de sarau

Cantigualha estreia em abril, com repertório que vai de Noel Rosa a Cazuza, passando por Chico Buarque, Gilberto Gil, João Bosco, Belchior e Biafra

Apresentação está agendada para 12 de abril no Teatro CIEE/RS e 23 de maio na Sala Jazz Geraldo Flach, em Porto Alegre, (Foto/André Feltes)

Os ensaios têm sido exaustivos no apartamento do bairro Santana onde mora Nei Lisboa, um dos mais inquietos e criativos representantes da música popular do Sul do Brasil – poucos produziram uma obra tão abrangente e com tanta qualidade do Rio Mampituba para baixo.

Nei dá os últimos retoques para definir as 22 canções de Cantigualha, show inédito de voz e violão, agendado para sábado, dia 12 de abril, no Teatro CIEE/RS, em Porto Alegre. Nele, pela primeira vez, cantará apenas o que se convencionou chamar de Música Popular Brasileira.

Como compositor, Nei é um cronista de espírito astuto, capaz de perceber e interpretar como poucos o que se passa ao seu redor, com inteligência e bom humor. Mas, ao longo da trajetória de mais de 45 anos, também demonstrou ser um excelente intérprete, o que poderá ser, mais uma vez, comprovado no show do Teatro CIEE/RS.

— Vamos ver como vou me sair. É como se estivesse me lançando numa nova carreira — brinca ele.

Em Cantigualha, onde empresta a voz à obra de autores consagrados, a escolha do repertório passou, antes de tudo, por memórias e pelo gosto pessoal do artista:

— Poderia ser um trabalho de pesquisa sobre a representatividade da MPB, mas não é. A ideia é cantar o que me agrada e o que me cai bem na voz e no violão.

Essa premissa explica, inclusive, o título do show.

No primeiro momento, Nei cogitou usar o termo “Cantiquário” para descrever a riqueza do cancioneiro que garimpou na MPB. Pensando bem, achou que a palavra poderia passar uma falsa impressão de que pretendia exaltar suas próprias escolhas.

— A intenção é dessacralizar. Neste sentido, é mais uma bagunça idiossincrática do que uma seleção the best of.

Cantigualha, que remete à antiguidade sem parecer ofensivo, soa “descompromissado com o pedigree das coisas, um ajuntamento sem catalogação ou certificação de beleza”.

Banca de revista

Boa parte das canções ele já tocava desde sempre. Outra parte sabia dedilhar pela metade e uma terceira tinha vontade de aprender, por admirar a letra ou se sentir seduzido pela harmonia no violão.

Nas sessões de ensaios, acompanhado só pelo violão, Nei tem a sensação de ser um aprendiz, como se voltasse no tempo e se visse obrigado a retornar à escola de música para decifrar a riqueza harmônica da MPB.

Na infância, foi aluno do Liceu Musical Palestrina e, na juventude, chegou a cursar dois anos do curso de Composição e Regência da UFRGS.

“A intenção é dessacralizar”, diz Nei (Foto/André Feltes)

Apesar disso, na sua formação como músico, dá crédito especial às revistinhas com cifras musicais das décadas de 1970 e 1980, a exemplo da Violão e Guitarra, popularmente conhecida como Vigu.

— Numa época em que não tinha internet, a saída para quem queria aprender rapidamente as músicas era ir até a banca de revistas para comprar a Vigu. Ali estavam as canções que tocavam no rádio e mais um pouco — relembra.

Esta não é a primeira vez que Nei abandona, de modo provisório, o repertório autoral.

Em Hi Fi, disco gravado ao vivo no Theatro São Pedro, em 1998, ele fez uma releitura muito particular de clássicos da música pop, incluindo Beatles, Rolling Stones, Elton John, Paul Simon e Ry Cooder. Eram canções que havia escutado na adolescência, trancado num quarto, quando morava em Barstow, no sul da Califórnia, durante um programa de intercâmbio estudantil.  

Cantigualha não deve virar disco, nem rodar por aí. Será mesmo?

A princípio, o show estava programado para ser sessão única no Teatro CIEE/RS, mas já está agendada uma segunda apresentação para o dia 23 de maio, na Sala Jazz Geraldo Flach.

— É diversão de uma só noite, embora nunca se saiba. Mas, se acontecer de novo, vai ser muito pontual — promete.

O concerto foi concebido como uma pausa na agenda de espetáculos com a banda que costuma acompanhá-lo, formada por Paulinho Supekovia na guitarra, Luiz Mauro Filho nos teclados e Giovanni Berti na percussão.

— Curto me apresentar com a banda, mas já fazia algum tempo que eu pensava num show só de voz e violão, até como descanso. A vontade de cantar MPB completou a ideia – diz.

Cantor de boteco

Nei se diz ansioso e surpreso com a “novidade” de cantar, como se estivesse num boteco, para uma plateia que sabe as letras de cor:

— Nunca tive esse lado de animador de festa ou músico de bar e agora sinto na pele o quão difícil é. Vou cantar 22 músicas e achei complicado, imagina 40 ou 50 canções para trabalhar a cada noite.

O repertório de Cantigualha está centrado, principalmente, no intervalo entre as décadas de 1960 e 1980.

— Um pouco de regressão não faz mal a ninguém, ainda mais nos tempos atuais. E devo confessar que conheço pouco da nova MPB, que não aparece na minha time line. Acho que o algoritmo não deixa.

Uma das estações dessa viagem de retorno ao passado é a época dos grandes festivais de música popular na televisão, que despertaram em Nei, ainda criança, “o gosto de cantar”.

Show com a participação do público (Foto/Ronald Mendes)

É o caso de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, que – Interpretada por Jair Rodrigues – dividiu o prêmio máximo do Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, com A Banda, de Chico Buarque, em 1966.

Chico, por sinal, está presente com três composições: Deus Lhe Pague e Rosa dos Ventos, além de Eu Te Amo (parceria com Tom Jobim).

Gilberto Gil, por sua vez, comparece com Se Eu Quiser Falar com Deus, Drão e Lamento Sertanejo. Essa última é uma parceria com Dominguinhos, que também figura no repertório do show com Quem Me Levará Sou Eu (coautoria com Manduca).

Há amostras de Ivan Lins, com Madalena (com Ronaldo Monteiro de Souza), do início dos anos 1970, e da dupla João Bosco e Aldir Blanc, com O Bêbado e a Equilibrista, hino da anistia política em 1979. Eclético, como a obra de Nei, o set list comporta também Cazuza, com Blues da Piedade, do disco Ideologia, de 1988.

Algumas das canções de Cantigualha já tinham sido gravadas pelo cantor, como A Palo Seco, de Belchior, de 1973, que entrou na trilha do filme A Última Estrada da Praia, de Fabiano de Souza, no começo da década de 2010.

Outras haviam aparecido avulsas em shows anteriores, caso de Leão Ferido, sucesso de Biafra (em parceria com Dalto), que galgou as listas das mais tocadas no rádio em 1981.

— Essa sempre gostei de cantar. Mas o show tem algumas surpresas, que prefiro não adiantar – diz, enigmático.

Fuga ao camarim

O que dá para contar é que, nesse recorte dos anos 1960 até a década de 1980, Nei deixou espaço para algumas exceções, caso do samba O X do Problema, de Noel Rosa, gravado por Aracy de Almeida, em 1936.

O X do Problema é remanescente de quatro ou cinco músicas de Noel que Nei aprendeu a tocar quando participou de um curso sobre história da música brasileira, ministrado por Luís Augusto Fischer e Arthur de Faria, no antigo Santander Cultural (atual Farol Santander), nos primeiros anos do século 21;

Na lista de canções, havia uma lacuna quando Nei conversou com o Rua da Margem, duas semanas antes da estreia. Era a gaveta reservada para a 22ª música, uma composição de Caetano Veloso, que ele ainda não havia definido.

Como Cantigualha foi concebido para ser um sarau, Nei pouco alterou o formato original das músicas com o intuito de não desestimular a adesão do público.

— Não fiz esforço algum para mudar arranjo, andamento, ritmo, harmonia. Mas, ainda assim, é uma releitura, não tem como escapar. Até porque ninguém consegue cantar igual ao Chico Buarque, à Elis Regina e ao João Bosco de uma só vez.

Um desafio foi adaptar para o modelo de voz e violão arranjos orquestrais sofisticados, como o de Um Girassol da Cor de Seu Cabelo, que integra o álbum Clube da Esquina, de 1972, na voz de Lô Borges (a canção é coautoria com Márcio Borges). No disco, o arranjo é de Eumir Deodato.

— Em alguns casos, tive que inventar uma coisinha minha, como em Dois Mil e Um (de Rita Lee e Tom Zé, lançamento dos Mutantes, de 1969), uma moda de viola que, de repente, vira uma loucura total, com guitarras e mil distorções sonoras.

Cantar a MPB também servirá, de algum modo, para realimentar o lado de compositor, que anda um pouco adormecido.

— Isso já vem de algum tempo, mas procuro não me angustiar. Não é um processo que eu domine. No passado, fiz tentativas de me obrigar a sentar para compor. Devo ter maís de 50 músicas pela metade. Quando a coisa não bate, não vai adiante.

Ele avisa, desde já, que não vai cantar o que não estiver contido no repertório previamente definido.

— É um show que não tem como atender a pedidos, a menos que o público espere meia hora até eu ir ao camarim para tirar a cifra da música na revista Vigu — diverte-se ele.

Seja como for, a proposta é promover uma cantoria com a participação ativa dos espectadores, já que a maioria das canções é bastante conhecida do público.

— Estou confiante de que vai ser uma noite alegre. Grande parte da beleza musical do espetáculo será a plateia cantando junto. Ou seja, eu vou lá para tocar e vou lá para assistir também — conclui.