A noite em que Eduardo Galeano deu uma banda no antigo e lendário Bar do Beto

Rua da Margem reconstitui visita do autor de As Veias Abertas da América Latina a Porto Alegre, em 1985

Eduardo Galeano entre os habitués do antigo Bar do Beto: fotografia virou cult nas redes sociais (Fotos/Luiz Eduardo Achutti)

O que uma fotografia de quase 40 atrás é capaz de dizer sobre o tempo e o lugar que lhe serviram de cenário?

Rua da Margem reconstituiu a história que está por trás da imagem capturada pelo fotógrafo Luiz Eduardo Achutti numa noite de novembro de 1985, no antigo e lendário Bar do Beto, um dos botecos mais cults de Porto Alegre na década de 1980.

Na imagem, o escritor uruguaio Eduardo Galeano mira a lente de Achutti ao caminhar por entre as mesas apinhadas de frequentadores assíduos do barzinho, à época localizado na esquina da Avenida Venâncio Aires com a Rua Vieira de Castro, no bairro Farroupilha.

Achutti: meio século de fotojornalismo em 2025 (Foto/Kátia Arruda)

O olhar triunfante e desafiador de Galeano na fotografia fazia sentido: aos 40 anos de idade, o escritor (que publicou 33 livros, entre eles, o clássico As Veias Abertas da América Latina, de 1971, traduzido para mais de 20 idiomas) retomava a liberdade de ir e vir – recentemente, havia obtido autorização para voltar a morar no Uruguai, após mais de uma década de exílio.

— Fiz a foto como um híbrido de fã e colega de bar. Por isso, ela ganhou uma abordagem franca e direta — diz Achutti, que vai completar meio século de carreira no fotojornalismo em 2025.

Não é exagero dizer que também a fotografia de Achutti virou cult: ela circula (muitas vezes, anonimamente) nas redes sociais há bastante tempo, de tal modo que o fotógrafo optou por disponibilizá-la, junto com outras imagens captadas naquela noite, num álbum em seu perfil no Facebook,

Calendário da calvice

Galeano tinha vindo a Porto Alegre para lançar o livro As Caras e as Máscaras, segundo volume da trilogia Memória do Fogo, um gigantesco painel histórico da América Latina nos últimos quinhentos anos.

A sessão de autógrafos aconteceu na livraria Quarup, de Sergius Gonzaga, professor de Literatura e um dos fundadores do curso pré-vestibular Unificado. A livraria estava alojada no andar térreo do edifício Uamurã, na Praça Dom Feliciano, no centro da cidade.

Sergius Gonzaga e Galeano na calçada do Bar do Beto

O uruguaio aproveitou a estadia para prestigiar a divulgação do jornal , que Sergius havia lançado em parceria com o historiador e escritor Décio Freitas e o advogado trabalhista Hélio Rodrigues.

Consta que essa não teria sido a primeira visita à capital gaúcha, mas há controvérsias. Galeano e Décio eram amigos de longa data, desde quando haviam dividido um apartamento em Buenos Aires.

— Décio contou-me que, depois da temporada em Buenos Aires, Galeano estivera uma vez em Porto Alegre em fins dos anos 1970, numa noite de chuva e vento.

Galeano teria batido à porta de Décio depois de saber que o amigo prestava serviços de advocacia para a Pilomax, empresa porto-alegrense que havia criado um método tido como infalível para fazer renascer os cabelos de qualquer homem calvo. A metodologia tem como base o corte das melenas de acordo com o calendário lunar, além do uso de tônicos capilares (até hoje, “Pilomax é cabelo por toda a vida” é o slogan da marca).

Em plena ditadura militar, Galeano estava ciente de que visitar Porto Alegre implicava correr riscos, uma vez que não seria bem-vindo ao Brasil, por causa de suas posições políticas.

— Mesmo assim, vaidoso e donjuanesco, ele arriscou a pele para obter o segredo mágico da Pilomax. Mas, por precaução, ao cruzar a fronteira, teria raspado a barba e pintado os poucos cabelos que lhe restavam para não ser reconhecido — relata Sergius.

O certo é que a viagem de Galeano camuflado ao Sul do Brasil se confunde com uma lenda urbana – nem Sergius bota a mão no fogo pela veracidade do episódio.

— Alguns anos mais tarde, o Galeano me garantiu que era tudo invenção da cabeça do Décio. Ambos eram conhecidos como notáveis mentirosos, por isso, nunca pude apurar se a história era verdadeira ou falsa — explica Sergius, ex-secretário de Cultura (de 2005 a 2012) de Porto Alegre.

Já sobre a visita de Galeano a Porto Alegre, em 1985, não pairam dúvidas. Além de documentada pelas imagens de Achutti, não faltam depoimentos para comprová-la. Naquela  noite, não é de admirar que o uruguaio tenha sido conduzido até o Bar do Beto.

— Combinamos de ir ao bar que frequentávamos quase todas as noites, é claro — conta Achutti.

Naqueles dias, Achutti produzia as fotografias do jornal , que era editado pelo estudante de jornalismo Gabriel Grossi (ele recebeu seu canudo na Fabico, da UFRGS, apenas no ano seguinte).

— Não ganhava um tostão para trabalhar no , mas estava feliz demais por conviver com os grandes intelectuais que orbitavam o jornal e a livraria Quarup — diz Gabriel (radicado em São Paulo, hoje é editor da revista Placar).

Clique nas imagens abaixo para conferir o brinde de Galeano com Gabriel e Ana Lúcia Belardinelli.

Arte e revolução

Já fazia bastante tempo, o Beto (como era carinhosamente chamado pelos clientes) tinha o charme dos “pés sujos”, botequins autênticos por excelência. Era habitado, predominantemente, por intelectuais de esquerda, entre atores, músicos, escritores, jornalistas, advogados e bancários, que se misturavam a figuras folclóricas da noite.

Não que isso fosse uma opção ideológica dos proprietários, tanto que, durante o dia, também era frequentado por alunos do Colégio Militar de Porto Alegre (localizado nas proximidades). Provavelmente, o perfil do público tinha a ver com uma questão geográfica – o boteco estava a meio caminho entre o Bom Fim e a Cidade Baixa, bairros boêmios prediletos da intelectualidade.

Gustavo de Mello e Galeano chegam ao boteco

No Bar do Beto, as conversas sobre arte e revolução eram acompanhadas pelo famoso sanduíche de peito de peru e regadas a cerveja e generosas doses de Steinhaeger.

Outra razão para bater ponto ali era a chance de anotar a conta na caderneta do célebre garçom Éber Onei Artigas, o Nei (que morreu atropelado ao atravessar a Avenida João Pessoa, alguns anos depois), e pagar só ao final do mês.

A bem da verdade, a história do botequim começou ainda na década de 1950, quando foi fundado como Bar do Pagé.

Mudou de nome, em fevereiro de 1960, ao ser adquirido por José Alberto Cravo, o Beto.

Ele administrou a casa por 20 anos, junto com a esposa Theresinha, que dirigia a cozinha. Faleceu em 2002, aos 70 anos de idade, quando já morava em Ponta Grossa (PR). Em 1980, havia transferido o ponto para o uruguaio José Montes de Oca, conhecido pelos clientes como Zé Careca. 

Na noite em que Galeano apareceu, o Bar do Beto já estava sob o comando de Zé Careca.

Já a livraria Quarup, no curto período de sua existência (dois anos), por sua vez, foi palco de sessões de autógrafos de vários escritores, além de Galeano – entre eles, Eric Nepomuceno, Aguinaldo Silva, João Antônio, José J. Veiga, Deonísio da Silva e Edla Van Steen.

Sergius Gonzaga tinha pouco tempo para administrá-la, uma vez que dava aulas não só no Unificado, mas também na UFRGS. Quem cuidava da livraria era Gustavo de Mello, um rapaz nascido em Santana do Livramento, mas registrado pelos pais em Rivera, do lado de lá da fronteira com o Uruguai.

Gustavo havia sido porteiro do Unificado e, em pouco tempo, impressionara o professor de Literatura devido ao elevado grau de leitura, o que o alçou ao posto de gerente da Quarup.

— Ele era genial para indicar livros. Mas, como administrador, um caos — recorda Sergius, com bom humor.

Como se não bastasse, Gustavo (que foi chefe da Casa Civil do governo do Estado, em 2002) tinha sido alfabetizado em espanhol, o que, cedo, lhe abriu as portas da prosa de Galeano, de quem era fã de carteirinha.

Gabriel, Gustavo, Galeano e Maria Cristina: hora de pagar a conta

— Quando li a trilogia Memória do Fogo, me senti cidadão de um território sem fronteiras — revela ele.

Como era de se esperar, as boas recordações de quem participou da noite de Eduardo Galeano no Bar do Beto ficaram embaçadas pela passagem do tempo.

Não existe consenso, por exemplo, se a bebedeira se deu imediatamente após a sessão de autógrafos na Quarup ou algumas horas depois, tendo a galera buscado o escritor no Hotel Embaixador, na Rua Jerônimo Coelho.

Seja como for, uma coisa é certa: Galeano foi levado até o Bar do Beto a bordo de uma Brasília amarela, que Achutti pediu emprestada da mãe, especialmente para a ocasião.

Além de Achutti, faziam parte do comitê de recepção ao uruguaio Gabriel Grossi e as irmãs Maria Cristina e Ana Lúcia Belardinelli, a Duda, à época, respectivamente, namoradas do fotógrafo e do editor do . Como não poderia deixar de ser, estavam lá também Sergius e Gustavo.

Cortina de ferro

A comitiva ocupou a mesa postada à esquerda da entrada principal do botequim, junto à Avenida Venâncio Aires.

Só que, dado o adiantado da hora, a cortina de ferro já estava abaixada. Conforme Gustavo, todos adentraram o recinto pela porta lateral, que conectava os fundos do bar à Rua Vieira de Castro.

A conversa com Galeano se estendeu madrugada adentro.

— Esperávamos encontrar um intelectual indignado e furioso, como era a maioria dos intelectuais engajados daquele tempo, mas fomos surpreendidos por uma figura doce, que encantou a todos com as histórias que contava — diz Duda (hoje professora de Português na Universidade de Siena, na Itália).

Pela fluência no idioma espanhol e o conhecimento literário, Gustavo foi quem mais trocou ideias com o escritor.

Segundo ele, Galeano vivia uma dupla emoção naquele período – de um lado, comemorava o desmoronamento da ditadura militar uruguaia e, de outro, estava triste com a morte de amigos ligados ao movimento Tupamaro, assassinados pela extrema direita de seu país (ele próprio recebia ameaças de morte).

Galeano saindo do Bar do Beto no final da noite

Durante o bate-papo, Galeano trouxe notícias dos tios de Gustavo, a quem havia encontrado no exílio. Recebeu, por sua vez, o relato sobre o mendigo Felix Peirallo Carvajal, natural de Rivera, que viajava pelo mundo proferindo palestras em troca de alguns vinténs. Em 2004, o escritor transformou a história de Felix, que escutou pela primeira vez da boca de Gustavo, no Bar do Beto, na crônica Andando Soles, que faz parte do livro Bocas do Tempo.

— Ele exibia um ar melancólico, que revertia com sacadas de humor e sarcasmo. Tinha uma capacidade incrível de repartir afetos e contar histórias peculiares. Acredito que ficamos conversando até altas horas e fomos os últimos a sair do boteco — anota Gustavo.

A trupe deixou o Bar do Beto pela mesma porta dos fundos por onde havia entrado e Galeano foi levado de volta ao Hotel Embaixador pela Brasília da mãe de Achutti.

O escritor – que morreu em 2015, aos 74 anos de idade – retornaria mais de uma vez a Porto Alegre após a noitada no Bar do Beto, como registra Gabriel:

— Virou quase arroz de festa. Sempre que vinha, saia para beber e almoçava com a turma — diz ele.

Ficaram as fotografias históricas de Achutti, que remetem a uma época pré-internet, quando cartazes colados nas paredes dos bares eram uma das principais maneiras de divulgar shows, peças de teatro e lançamentos de livros. Numa das imagens, Galeano aparece com um botom da peça A Lição, que a atriz Ilana Kaplan lhe cravou no peito naquela noite.

Em 1989, o barzinho foi adquirido pelos atuais proprietários, os irmãos Nestor, Batista e Fabiano Fontana, que – cinco anos depois – transferiram o estabelecimento para a calçada defronte, além de abrirem filial na Cidade Baixa. Sinal dos tempos: na esquina do Bar do Beto original, hoje funciona uma farmácia.