O mais universal (e mais gaúcho) diretor do teatro brasileiro
Gerald Thomas se engaja na luta dos artistas do Sul do Brasil afetados pela enchente e explica a sua conexão com o Rio Grande do Sul
Gerald Thomas cobrou do poder público a liberação de recursos emergenciais para a classe artística, impactada pela catástrofe climática de maio de 2024 (Foto/Arquivo Pessoal)
— Eu não tenho como não me engajar, como ficar passivo diante de uma catástrofe como essa. Como não ficar emocionado? É devastador. Além de chorar, preciso fazer alguma coisa, ainda mais quando se trata de um povo como o gaúcho e de um lugar como o Rio Grande do Sul.
A declaração é do diretor de teatro Gerald Thomas ao comentar a situação dos artistas do Sul do Brasil afetados pelas enchentes de maio de 2024. O depoimento foi dado ao podcast do Rua da Margem, no canal Adjuntos (escute a íntegra da entrevista aqui).
Apontado como o mais universal dos encenadores do teatro brasileiro, com peças produzidas em cerca de 20 países, incluindo Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Áustria e Itália, Gerald postou vários vídeos no Instagram, nas últimas semanas, cobrando a liberação dos recursos da Lei Paulo Gustavo (LPG).
A legislação emergencial foi instituída, em 2022, para socorrer a classe artística em função de outra calamidade – a pandemia da Covid-19. Os recursos já haviam sido encaminhados pelo Ministério da Cultura ao governo estadual em 18 de julho de 2023. Mas, quase um ano depois, apenas 30% tinham sido, de fato, liberados pela Secretaria de Estado da Cultura do RS. Após muita pressão de produtores e artistas, a Sedac anunciou a elevação desse percentual para 71,6% no último dia 12 de junho.
Além da questão humanitária, também a identidade com as plateias gaúchas contribuiu para o posicionamento adotado pelo diretor:
— Tenho que ser absolutamente aberto: o público do Rio Grande do Sul é o melhor do Brasil. Desculpem os outros, mas é. É o que tem melhor entendimento do meu trabalho, disso não tenho a menor dúvida.
Nessa relação de empatia e admiração construída ao longo da carreira, uma figura que se destaca é a de Eva Sopher, diretora do Theatro São Pedro de 1975 a 2016, quando se afastou por motivos de saúde.
Eva Sopher: conversas em alemão (Foto/Sandro Lupatini/Divulgação)
Nascida na Alemanha, de origem judia, ela fugiu com parentes para o Brasil em 1936, por causa da perseguição do nazismo (Eva morreu em 2018, aos 94 anos).
Igualmente, o pai de Gerald, o alemão Hans Thomas, embora não fosse judeu, era antinazista e, durante a 2ª Guerra Mundial, passava informações para a Resistência Francesa a partir do território da Alemanha até migrar para o Brasil no começo dos anos 1940.
— A dona Eva veio de uma região do mundo que me é familiar. Conversávamos em alemão. No RS, de modo geral, a presença da cultura alemã é forte e isso me traz uma familiaridade — comenta Gerald.
Em 1992, a convite de Eva, Gerald permaneceu cerca de três meses em Porto Alegre, junto com a Companhia da Ópera Seca (que havia fundado em 1985, em São Paulo), reelaborando The Flash and Crash Days no Theatro São Pedro para uma reestreia em circuito nacional. A peça contava com Fernanda Montenegro e Fernanda Torres (com quem era casado à época) no elenco.
— Eu tinha o dia inteiro para ensaiar e ainda sobrava tempo para fazer workshops. Ficamos hospedados num hotel do centro da cidade, daqueles com vento entrando pela janela. Era uma época maravilhosa, nem um pouco pasteurizada. O Tatata Pimentel (professor de literatura, colunista de jornal e apresentador de televisão) me levava pra lá e pra cá. Almoçávamos peixe frito no Mercado Público. Eu adorava. Detesto restaurantes chiques — recorda Gerald.
Voluntário no Katrina
Outra afinidade com o RS é a admiração pela obra do pintor Iberê Camargo. Em 2022, no espetáculo F.E.T.O. (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada), o diretor colocou à beira do palco a tela No Vento e na Terra I, da série Ciclistas do artista plástico gaúcho.
— Sou o maior fã de Iberê Camargo no planeta. Já falei isso publicamente em várias entrevistas, mas sempre passa batido pela imprensa paulista, ninguém dá a mínima. Estou aqui reafirmando — diz Gerald.
Tela No Vento e na Terra I, de Iberê Camargo (Reprodução)
Não foi a primeira vez que Gerald se envolveu com uma causa humanitária derivada de desastre climático. Em 2005, quando o furacão Katrina devastou Nova Orleans, provocando a morte de 1,5 mil pessoas e deixando mais de 1 milhão desabrigadas, ele trabalhou como voluntário no socorro às vítimas.
— Foi igualmente catastrófico. O maldito Bush (George W. Bush, presidente dos EUA à época) não acionou os serviços de emergência tão rapidamente quanto deveria. Restou a ação dos voluntários. Como artista, fiz o que pude, mas não foi suficiente, porque não havia sido treinado para isso.
Ele recorda de vomitar ao deparar com cadáveres boiando, quando percorria de caiaque as áreas da inundação.
— Acabei virando um problema naquela situação. Fui deslocado para cuidar de questões administrativas. Estranhamente, algo parecido se deu em 2001, quando trabalhei durante três meses nas ruínas das torres do World Trade Center, em Nova York. No começo, destrinchava caixas onde havia detritos até de seres humanos, mas não aguentei e fui cuidar de serviços burocráticos nos barracos de administração. É uma barra muito pesada — relembra, mencionando sequelas na voz que perduram até hoje, devido a ter respirado amianto naquele período.
Gerald compara a adesão à causa dos produtores de cultura do RS impactados pelas enchentes também ao trabalho que realizou na Anistia Internacional, em Londres, nos anos 1970:
— Na época, com 22 anos, eu pensava que não era possível fazer teatro quando pessoas estavam correndo perigo de vida em porões do Doi-Codi (centro das operações de repressão política) ou sendo jogadas de helicópteros durante a ditadura militar. Em situações como essas, não há espaço para metáforas. É hora de botar o pé no chão e agir politicamente. E as conexões feitas em situações de guerra, ou quase guerra, são eternas, como é o caso das conexões que fiz durante o estado de emergência aí no Sul – diz Gerald, citando a atriz e produtora Dinorah Araújo (que faz parte do Comitê da LPG no RS) e Luciano Wieser, fundador do grupo de teatro De Pernas pro Ar, de Canoas.
Cidadão do mundo
Enquanto o pai nasceu na Alemanha, a mãe de Gerald, Ellen, era galesa e tinha origem judia. Contudo, há oito anos, o diretor descobriu que o avô materno era um índio norte-americano. Ele fazia parte da tribo Puyallup, que habita a costa noroeste dos Estados Unidos, perto da região onde hoje se localiza Seattle, capital do estado de Washington.
Avô materno: índio da tribo Puyallup
Aos seis anos de idade, Karl Landsberg (nome dado no País de Gales) teria sido roubado por uma rede de tráfico de crianças e conduzido até a Grã-Bretanha. Histórias contadas pela mãe ao longo da vida parecem confirmar a ascendência indígena.
— Quando criança, ela acompanhava meu avô em pescarias e ficava envergonhada quando ele amarrava dois pedregulhos para jogar no mar, como fazem os índios americanos, em vez de usar âncoras de ferro.
Em 2016, exames de DNA apontaram um percentual de 23% dos genes de Gerald vinculados à tribo do avô.
— De alguma maneira, isso estava dentro de mim, sem eu saber. Tanto que, em 1996, 20 anos antes de fazer o teste de DNA, quando fui convidado para encenar uma peça com o Dogma 95 (movimento de cineastas dinamarqueses, entre eles, Lars von Trier), criei uma tribo de índios loiros e de olhos azuis. Outra coisa é que a tribo de meu avô vivia da pesca do salmão usando barcos a remo. E o que eu faço desde criança? Eu remo. Então, as coisas são herdadas. Fico emocionado ao falar sobre isso. Nunca tinha falado antes — afirma Gerald.
A verdade é que, nascido em Nova York, Gerald é, literalmente, um cidadão do mundo. Prestes a completar 70 anos de idade (em 1º de julho deste ano), está comemorando também pouco mais de meio século de vida teatral. Curiosamente, o destino como artista poderia ter sido outro.
Desenhava desde pequeno e, pode-se dizer, foi criado para ser pintor. Na adolescência, frequentou o atelier de Ivan Serpa (fundador do Grupo Frente, referência do construtivismo no Brasil) e, com a benção de Ziraldo, chegou a publicar desenhos na revista O Cruzeiro.
No mundo das artes visuais, conviveu também com Hélio Oiticica, uma das principais influências de Caetano Veloso e Gilberto Gil para a criação da Tropicália, movimento que mudou os rumos da música popular no Brasil ao final dos anos 1960.
Mas a paixão pelas artes cênicas foi despertada aos 15 anos de idade, quando Gerald acompanhou os ensaios de O Balcão, de Jean Genet, conduzido pelo amigo Sérgio Mamberti, que fazia parte do elenco.
A peça produzida por Ruth Escobar e dirigida pelo argentino Victor Garcia (uma das mais transgressoras encenações do teatro brasileiro) ficou em cartaz de dezembro de 1969 a agosto de 1971, em São Paulo. Além de Mamberti, estavam em cena Raul Cortez, Paulo César Pereio, Célia Helena e Ney Latorraca, entre outros.
Na versão de Garcia, um bordel frequentado por políticos, policiais, juízes e padres se apresentava como uma metáfora da ditadura militar. Em junho de 1970, Jean Genet desembarcou na capital paulista para conhecer de perto a montagem brasileira.
— A essa altura, Ruth pedia: “Gerald, traz um café”. Depois, dizia: “Garoto, limpa os pés do Genet”. Olha que doideira: eu lavei os pés de Jean Genet! Sabe de uma coisa? Em toda a minha vida, sempre estive no lugar certo, na hora certa. Eu podia estar em outro lugar naquela hora e hoje, talvez, estaria trabalhando num açougue, em vez de fazer teatro.
Algum tempo depois, radicado em Londres para estudar “por conta própria" na Biblioteca do Museu Britânico, Gerald ingressou de penetra nos ensaios de Peter Brook, uma lenda do teatro britânico, exatamente como tinha feito no Teatro Ruth Escobar.
Energia indomável
Como bem dizia Franz Kafka, “de um certo ponto adiante não há mais retorno. Esse é o ponto que deve ser alcançado”. Pois bem: dali em diante, o teatro passou a ser a principal razão de vida de Gerald.
Mas era preciso ganhar uns trocados para pagar o aluguel. Na juventude, morando em Nova York, trabalhou por cinco anos como ilustrador da “Op-Ed”, página de opinião do The New York Times, ao mesmo tempo que ministrava workshops no La MaMa Experimental Theater, icônico teatro off-Broadway.
— Nunca ganhei tão bem na vida como no The New York Times, que pagava 350 dólares por dia, enquanto que, no teatro, eu recebia 120 dólares por semana.
Para ilustrar a página do NYT, Gerald era obrigado a conversar com os autores dos artigos – gente como o ex-presidente Richard Nixon e o ex-secretário de Estado Henry Kissinger. Certamente, tinha mais identificação com a galera que circulava no La MaMa, onde adaptou e dirigiu, pela primeira vez, as peças de Samuel Beckett, o criador do teatro do absurdo e um dos mais importantes dramaturgos do século 20.
Depois de troca de correspondências, Gerald conheceu Beckett, pessoalmente, em Paris, na década de 1980, encenando 19 textos do autor irlandês, seis deles em première mundial.
“Julian Beck não foi apenas um destruidor de valores, não era apenas vandalismo cultural o que ele fazia. Grupos de protesto como o Living Theatre tinham um orgulho gigantesco de estar criando um novo vocabulário de teatro de rua, e o Julian era um poeta desse novo vocabulário”
Outra inspiração foi Julian Beck, do Living Theatre, célebre grupo teatral da contracultura. Em That Time, dirigido por Gerald, Julian subiu ao palco, pela primeira e única vez, como ator fora do Living Theatre. Mais que uma influência artística, é um exemplo de conduta pessoal:
— Não há momento na minha vida que não pense nele como honra e respeito. Enquanto Samuel Beckett era um eremita, um solitário irlandês radicado em Paris, que criava por conta própria, sem compromisso político, Julian era um ser político dia e noite. Para ele, conversar com uma pessoa na rua era um ato político e não havia pessoa mais importante que a outra. Ele era um social-comunista de verdade, sem pertencer ao Partido Comunista de Stalin, Lenin ou Mao Tse Tung.
Certamente, Gerald se espelha na postura de Julian Beck para agir, publicamente, em favor dos artistas gaúchos afetados pelas enchentes de maio de 2024, com uma energia indomável e com empatia pela condição humana, posicionando-se a favor da vida. Ele explica que, ao fazer isso, não pretende se envolver com as disputas partidárias do cenário político nacional:
— Não tenho interesse político algum, até porque não voto e não pago impostos no Brasil. Tudo o que fiz pelos gaúchos foi por uma questão humanitária, e pronto. Estou falando de paixão, é algo espontâneo. Aliás, essa é a função do teatro. E, por incrível que pareça, é também no Rio Grande do Sul que essas discussões acontecem. Não só em Porto Alegre, mas também em Santa Maria e Canela, lugares onde já estive, elas fluem em todas as esquinas e são intensas com qualquer pessoa — conclui.