O Uruguai é aqui
Tango – Sabores do Uruguay é o bar da moda na Cidade Baixa e proprietário já se prepara para abrir novo point no bairro boêmio
Esperto. Sabido. Dotado de sagacidade para lidar com pessoas ou situações.
Essas são algumas definições dos dicionários para a palavra “matreiro”. Nenhuma delas tem o alcance que o termo sugere ao uruguaio Robert Fabian Loyarte Lascano, de 37 anos.
Ele é dono do Tango – Sabores do Uruguay, bar que vem aglutinando uma pequena multidão na calçada à sua frente, em especial aos domingos, na Rua da República, quase esquina com a José do Patrocínio, na Cidade Baixa.
Do lado de cá da fronteira, a palavra matreiro é usada com mais frequência para se referir a animais pouco confiáveis.
— De onde eu vim, matrero diz respeito ao homem que vive à margem da lei, sem chefe ou patrão, quase como um selvagem — explica Robert.
O brilho no olho e o sorriso nos lábios não deixam dúvidas. Mas a pergunta é inevitável e a resposta vem de bate-pronto:
— Sim, é claro que eu me considero um matrero — diz ele, sem pestanejar.
CLIENTES NO PODER
Aberto há nove anos, o bar de Robert adota um slogan que é quase um cartão de visitas: Tango, un pedacito de Uruguay en el corazon de la Cidade Baixa.
De fato, o acento uruguaio está presente no cardápio (que inclui parrilla, chivitos e panchos) e nas imagens fixadas nas paredes, quase todas ligadas ao futebol.
Entre elas, a caricatura de Luis Suárez, craque revelado pelo Nacional (time do coração de Robert), que também brilhou com as camisas de Liverpool e Barcelona.
Não poderia faltar o flagrante do gol de Ghiggia, que definiu a vitória do Uruguai sobre o Brasil na finalíssima da Copa do Mundo de 1950, no Rio de Janeiro, triunfo que entrou para a história como Maracanazo. Tem ainda uma belíssima fotografia aérea da Plaza Independencia, no coração de Montevidéu.
— Aqui está a Intendência Municipal, ali o Teatro Solís e, mais para o canto, o portal da Ciudad Vieja — aponta Robert, como quem acaricia doces lembranças.
De segundas a quintas-feiras, o Tango é um bar sossegado e acolhedor. Não só pelo espaço interno de apenas 26 metros quadrados, mas também pelo clima familiar que se estabeleceu entre os frequentadores, a maior parte composta por moradores das redondezas.
Um dos mais assíduos é Fabrício Silveira, escritor e professor da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da UFRGS.
— Estou sempre aqui porque é um bar que fica perto de casa e, ao mesmo tempo, próximo a uma das esquinas mais emblemáticas de Porto Alegre. Aqui, todo mundo meio que se conhece. Em pouco tempo, a gente fica sabendo da vida de todos. Vira uma camaradagem mesmo — diz Fabrício, autor de Rupturas instáveis (finalista do Prêmio Açorianos de Literatura, em 2013).
A cumplicidade entre dono e clientes é tamanha que, em algumas ocasiões, Robert já deixou o estabelecimento sob a direção dos fregueses e saiu porta afora para dar uma volta no bairro.
O ator e figurinista de teatro Alexandre Magalhães e Silva que o diga. Numa noite de calmaria, ele se viu sozinho tomando conta do bar. Dali um tempo, Robert passou de carro em frente ao boteco e gritou:
— Se não gostar da cara do cliente, não precisa atender!
DE REPENTE, GRÁVIDOS!
Não por acaso, o que fascina a jornalista cultural Camila Diesel é a sensação de identidade e pertencimento que o Tango inspira. Por sinal, ali se deu, em 2017, o primeiro encontro dela com o atual companheiro Filipe Duarte, repórter esportivo da rádio Gaúcha.
— O Tango é especial em nossa história. Posso dizer que é um dos meus lugares preferidos na Cidade Baixa — comenta Camila, que tem um canal no YouTube e apresenta um programa de entrevistas na faixa das 19 horas na rádio Guaíba.
Um boteco que honra o próprio nome não pode mesmo prescindir de boas e felizes histórias de vida, como a de Camila e Filipe. Não é um caso isolado.
Em 18 de novembro de 2017, a engenheira Deborah Hartz (que trabalha no Detran) bebia uma cerveja na calçada, junto com o marido, Raul, como o casal fazia – e ainda faz – quase todas as noites.
Por aqueles dias, ela andava se sentindo um pouco estranha.
Além de sonolenta, tinha uma vontade danada de comer feijão, apesar do calor do verão que batia à porta. De brincadeira, comentou com Raul e Robert sobre a possibilidade de estar grávida.
A conversa foi ganhando seriedade e, lá pelas tantas, apreensiva, Deborah deixou o copo de cerveja pela metade sobre a mesa e deu um pulo até a farmácia mais próxima para comprar uma caixinha de teste de gravidez.
— Foi mais por descargo de consciência. A intenção era descartar a hipótese — relembra ela.
Na volta, foi direto ao banheiro do Tango para fazer o teste. Deu positivo! Dá para imaginar o estado de espírito que tomou conta dela ao retornar até a mesa na calçada.
— De repente, estávamos grávidos! Foi uma alegria imensa, apesar de eu estar completamente atônita — descreve Deborah.
Em seguida, Robert trouxe mais cervejas e distribuiu charutos na mesa do casal para a comemoração da boa nova, como ficou registrado em vídeo postado no Instagram (clique aqui para assistir).
Gabrielle, que nasceu em julho de 2018, hoje está enturmada com a galera e é uma figura querida por todos que frequentam o bar.
Paisagem indiana
O Tango virou ponto de encontro também de músicos que tocam em outros bares da Cidade Baixa e se habituaram a dar canjas no boteco de Robert.
Em dezembro do ano passado, o uruguaio propôs a alguns deles a criação de um projeto de música ao vivo.
— Os caras já vinham aqui todo dia e tocavam informalmente. Resolvi contratar a galera — relata Robert.
O núcleo que deu a largada contava com Mathias Pinto (conhecido como Mathias 7 Cordas), Mauro Moura e Márcio Barbosa, mas, aos poucos, outros foram aderindo, como Adriana Deffenti, Valéria Barcellos, Maicon Ouriques, João Madruga, Nenê Braz e Venise Borges.
Assim, desde janeiro deste ano, o Tango passou a promover música ao vivo uma vez por semana. Foi quando a calçada em frente ao bar se transformou no que Robert denomina de “paisagem indiana”, tamanha a disputa por metro quadrado.
Para se ter noção, aos domingos, o Tango chega a reunir quase 500 pessoas em frente ao bar. Robert assegura que a capacidade de atendimento é de, no máximo, 150 clientes e que as demais pessoas estão transitando pelo bairro, vindas de outros estabelecimentos.
Seja como for, ninguém duvida que o Tango é o bar da moda na Cidade Baixa. Como isso aconteceu?
— O que houve é que as pessoas curtiram as rodas de música e chegaram em grande número. Pesou também o amadurecimento do negócio. Estávamos bem preparados para receber a galera — esclarece o proprietário.
Clique ou toque nas imagens abaixo da calçada lotada do Tango em noites de domingo ou vésperas de feriado (a foto da comemoração da vitória de Lula na eleição presidencial é da criadora digital Letícia Vitória).
Já vai longe o tempo em que ele deixava o Tango sob o comando dos clientes. Desde que arrebanhou uma equipe afinada para trabalhar no bar, isso já não acontece. Entre profissionais eventuais, o time fixo inclui Tânia Magalhães, que cuida da cozinha, e Luciana Cardoso da Silva no atendimento aos clientes.
— Estou feliz porque consegui juntar pessoas com a pegada certa para receber a clientela, que já está habituada com meu jeito de trabalhar. As gurias são tão malandras quanto eu, até mais — elogia ele, com orgulho.
Como era de se esperar, o sucesso trouxe seus desafios. A música amplificada e a algazarra na calçada chamam a atenção – frequentemente, a Brigada Militar (inclusive com a cavalaria) e outras autoridades locais batem o ponto no Tango.
São as dores do crescimento. Mas Robert está convencido de que é possível alcançar um ponto de equilíbrio entre o direito ao lazer de seus clientes e o sossego dos moradores da região.
— O bar proporciona um momento saudável de descontração para o público. As pessoas vêm aqui, cantam, dançam e depois vão para as suas casas, com mais ânimo para encarar a semana de trabalho. No domingo seguinte, elas voltam para escutar o samba outra vez. Pelo menos, eu espero que voltem.
Calor humano
Robert é natural do Chuy, cidadezinha localizada no departamento de Rocha, junto à divisa com o Brasil, com cerca de 10 mil habitantes.
Descendente de bascos que migraram para a América do Sul – o pai, Orides, era conhecido como El Basco no Chuy –, fez bicos na construção civil antes de conseguir trabalho de garçom e assador de carnes em restaurantes da fronteira, como a Churrascaria Martin Fierro e a Parrillada Los Leños.
A princípio, ia trabalhar na cozinha, mas um amigo das peladas de fim de semana sugeriu que reivindicasse uma vaga de garçom.
— Tu é extrovertido, fala bem e se integra facilmente à galera. No salão, vai se dar bem. Além disso, o trabalho na cozinha é pesado — recomendou o parceiro.
Na Parrillada Los Leños, conheceu o jornalista Paulo Sant’Ana (falecido em 2017) e o músico João de Almeida Neto, hoje cliente do Tango. Era uma época de bastante movimento na fronteira.
— O peso não valia nada. Os brasileiros compravam produtos uruguaios a granel do outro lado da divisa — relembra.
Desde 2010 radicado em Porto Alegre, trabalhou nos restaurantes Varietá, no Shopping Praia de Belas, e Bah, no Barra Shopping, quando se viu obrigado a lidar com cardápios com nomes em inglês e francês. Além disso, era preciso indicar vinhos que se harmonizassem com o prato.
— Eu tinha vindo do interior do Uruguai. Para nós, bastava servir churrasco com vinho e a coisa se harmonizava sozinha — confessa.
Curioso por natureza, o matrero resolveu fazer um curso de maître no Senac, onde conheceu um casal de irmãos – Carlos e Andréia Furquim –, que o convidaram para trabalhar no Alho Poró Bistrô, restaurante aberto na sede do Sindbancários, na subida da Ladeira.
— Foi a primeira e única proposta de gerência de salão que recebi na vida. Tínhamos que começar do zero e eu era o mais experiente ali. Tomei a luta como se fosse minha — conta ele.
A experiência despertou a vontade de ter o próprio estabelecimento. Eis que apareceu um conterrâneo, Hugo Larrualde, com a proposta de abrir um bar na Cidade Baixa. Em 26 de setembro de 2013, o Tango – Sabores de Uruguay abriu as portas pela primeira vez.
Menos de três meses depois, Hugo decidiu voltar para o Uruguai e vendeu a parte do negócio para Robert. O resto é história.
O sucesso do Tango animou o uruguaio a abrir um novo negócio, que vai ocupar um casarão antigo, na esquina da Rua Lima e Silva com a Lobo da Costa.
— A ideia é trabalhar com uma gastronomia que tenha a cara do Uruguai, sem perder o calor humano da Cidade Baixa — antecipa.
A casa tem um espaço interno de 100 metros quadrados, ou seja, é quatro vezes maior do que o Tango. Além disso, conta com uma ampla área externa para distribuir mesas na calçada da Lobo da Costa.
Lá dentro, serão dois ambientes, separados por uma “porta invisível”, como revela Robert. Num deles, vai rolar música ao vivo, com cobrança de couvert; no outro, será possível se acomodar em bancos junto ao balcão postado em frente à churrasqueira.
Robert ainda está montando a equipe do novo empreendimento, mas já definiu que os futuros contratados terão que passar por um vestibular no Tango – afinal, foi onde tudo começou.
— Eles terão que dar uma polida aqui. O Tango vai ser a escola deles.
Casado com Stephania Cora – uma das sócias da Moa Cafeteria –, com quem tem a filha Martina, de dois anos (a segunda, Marcela, nascerá dentro de 30 dias), Robert está ansioso para abrir o novo empreendimento.
As obras estão a pleno vapor para que comece a funcionar já nos primeiros dias de dezembro. O nome do novo restaurante? Adivinha. Claro, não poderia ser diferente – Matrero Parrilla de Barrio.
Afinal de contas, estamos falando da mais nova aventura de um matrero por excelência, que não sossega enquanto não atinge seus objetivos.
— Olha, se alguém disser que vou conseguir o que desejo, eu até me assusto. Mas se disser que não vou conseguir, bom, aí é que eu não desisto mesmo. Tenho certeza de que a galera vai curtir — finaliza ele.